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Estado Islâmico e o atentado na Rússia

Estado Islâmico e o atentado na Rússia

Escrito por Matheus Veríssimo e Fernando Alba

O Ataque em Moscou

Na noite do dia 22 de março de 2024, na casa de shows Crocus City Hall de Moscou, um ataque realizado por 4 indivíduos armados vitimou 139 russos. Não bastasse isso, ao menos 100 pessoas ficaram feridas, seja por ferimentos a bala, seja pela inalação de fumaça, resultante de um incêndio iniciado pelos agressores.

O atentado foi o pior sofrido pela Rússia desde os perpetrados por separatistas chechenos em 2004, isto é, o pior visto no país nos últimos 20 anos. A autoria do ataque foi reivindicada pelo Estado Islâmico – Província de Khorasan (EI-K), um ramo do Estado Islâmico (EI).

Tal revelação trouxe novamente essa infame organização paramilitar jihadista ao centro do debate público ocidental, anos depois de se presumir sua derrota completa. Mas afinal, por qual motivo o EI atacou a Rússia? Quais os riscos que ele ainda representa para a comunidade internacional?

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Créditos: Maxim Shemetov – Fonte: ABC News

 

Uma Breve História do Estado Islâmico

A filosofia do Estado Islâmico e contexto

Para entender adequadamente o movimento fundamentalista islâmico que forma a base ideológica do EI, o Salafismo, devemos regressar para o ano de 2001. Neste ano, os ataques de 11 de setembro nos EUA representaram uma quebra de paradigma na ordem internacional vigente, em que o grupo salafista Al Qaeda contestou a hegemonia estadunidense.

Em resumo, o Salafismo é uma vertente fundamentalista sunita, tendo por fundamento a reprodução da forma de vida dos “salaf”, os “ancestrais piedosos”. Com efeito, os salafistas defendem a interpretação literal do Corão, utilizam as vestimentas tradicionais de seus antepassados, acreditam na aplicação integral da Sharia e rejeitam as influências estrangeiras.

Sobre o pretexto de que o Iraque era um estado simpatizante do terrorismo, os EUA lideraram uma coalizão para depor Saddam Hussein. Iniciada em 2003, a Operação Iraqi Freedom conseguiu uma vitória militar avassaladora após cerca de 3 semanas de conflito, derrubando o regime e capturando Hussein.

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Créditos: Jack Guez/AFP – Fonte: Sputnik Globe

Surgimento das cinzas da Guerra

Porém, a guerra perduraria por anos devido ao nascimento de grupos insurgentes contrários às tropas estrangeiras de ocupação e ao novo governo de Bagdá. Dentre esses, um em particular interessa ao escopo deste artigo: o Jama’at al-Tawhid wal-Jihad. Fundado em 1999, pelo jordaniano Abu Musab Al-Zarqawi, o grupo se integrou à Al Qaeda no Iraque em 2004 e tornou-se um símbolo da insurgência salafista.

Após a morte de Al-Zarqawi em uma operação estadunidense em 2006, seu sucessor, Abu Omar Al-Baghdadi, tentou unificar diversos movimentos islâmicos insurgentes em um único grupo: o Estado Islâmico do Iraque (EII). Renomeando o grupo, o novo líder buscava ampliar o apelo de seu movimento no país, apesar de manter sua vassalagem nominal a Al Qaeda.

Contudo, o aumento do efetivo militar dos EUA a partir de 2007 combateu a organização com uma eficiência brutal e sistemática, iniciando um período de contínuo minguante no poderio dos fundamentalistas. Como resultado dessa maior presença estadunidense, uma operação conjunta com os iraquianos abateu Abu Omar Al-Baghdadi em 2010.

Esse processo só começou a ser revertido a partir da ascensão do infame Abu Bakr Al-Baghdadi à liderança do EII, ocorrida no mesmo ano da morte de seu predecessor. Em poucos meses, a milícia salafista apresentou sinais de revigoramento ao ganhar força nas regiões mais setentrionais do Iraque.

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A Bandeira do Estado Islâmico

Créditos: Yo – Fonte: Wikipedia

 

Ascensão do terror

No contexto da Primavera Árabe, em que diversas ditaduras estavam sendo contestadas por sua população, a Guerra Civil Síria mostrou-se uma oportunidade única para as ambições salafistas. Estabelecida em 2011, a Frente Al-Nusra se converteu rapidamente na milícia mais eficaz em sua insurreição contra o regime de Bashar Al-Assad, com o fim de fundar em seu lugar um Califado na região do Levante.

Em solidariedade ideológica, o EII apoiou militarmente a Frente Al-Nusra na Síria, reforçando sua ofensiva pelo leste do país e auxiliando na consolidação de suas conquistas territoriais. A proximidade dessas milícias tornou-se tamanha que Al-Baghdadi anunciou sua fusão em uma única organização: o Estado Islâmico do Iraque e da Síria (EIIS). Ao fazê-lo, o líder salafista declarava uma ruptura definitiva com a Al Qaeda e prenunciava uma nova e sangrenta era do terrorismo islâmico no mundo.

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Fonte: The Times of Israel

Finaciamento do Estado Islâmico

A fim de entender a ascensão meteórica do EIIS na região, faz-se necessário compreender como era realizado o financiamento de sua organização. Primordialmente, a captura de poços petrolíferos no Iraque e na Síria foi fundamental para a manutenção da expansão do grupo, com muitas ofensivas jihadistas tendo por objetivo capturar cidades e regiões extratoras do “ouro negro”.

Inegavelmente, o contrabando de petróleo se mostrou a principal fonte de receitas do grupo fundamentalista, mas não a única forma de custeio de suas atividades. O EIIS também se financiava através de doações de simpatizantes (locais ou estrangeiros), de sequestros, de pilhagem, de extorsão, de impostos sobre minorias religiosas e até com a prática da escravidão.  

O Apogeu

Com todo esse poderio econômico e militar acumulado, Al-Baghdadi proclamou em 2014 o Estado Islâmico (EI) como um Califado, isto é, um império muçulmano cujo líder possui autoridade religiosa sobre o Islã. Dessa forma, o EI abandonava meras restrições ao Iraque e à Síria, declarando pretensões de liderar todo o Mundo Islâmico.

No ano seguinte, o EI atingiu o seu zênite territorial, controlando amplas porções do Iraque e da Síria e alegando comandar uma força de 100.000 militantes. Há também indícios de que muitos de seus combatentes foram herdados do regime Hussein, o qual era sustentado pelo apoio de comunidades sunitas iraquianas, radicalizadas ao longo dos anos de conflito e incorporadas aos movimentos salafistas.

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Ápice territorial do EI em 2015

Em cinza os territórios sob controle do EI, em verde os sob controle dos rebeldes sírios, em salmão os sob controle do regime Assad, em rosa os sob controle do governo iraquiano, em branco os sob controle do Jabhat Fateh al-Sham e em amarelo os sob controle dos curdos sírios e iraquianos

Créditos: Tan Khaerr – Fonte: Wikipedia

Para além de sua força na Ásia Ocidental, o grupo reuniu simpatizantes pelo mundo inteiro através de campanhas nas redes sociais. Recrutando pessoas que compartilhavam de sua visão extremista islâmica, o EI coordenou uma série de atentados terroristas pelo mundo, os quais ocorreram em países próximos e até em outros continentes (como África e Europa). Um dos seus ataques mais emblemáticos foi o realizado no Teatro Bataclan em Paris, em que 100 franceses foram mortos em dezembro de 2015.

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Créditos: Christophe Archambault/AFP/Getty Images – Fonte: Times

A Queda

Nesse ínterim, estabeleceu-se uma aliança improvável entre dois antigos rivais: os Estados Unidos e a Rússia. Apoiando lados opostos na Guerra Civil Síria, devido ao alinhamento do Regime Assad com Moscou e dos rebeldes pró-democracia com Washington, ambas potências viram seus interesses ameaçados pelo avanço dos salafistas.

Em um processo atípico, Putin e Obama decidiram unir forças para combater o EI através do bombardeio direto a posições dos terroristas e pelo financiamento, treinamento e apoio a grupos rivais. Uma grande coalizão de sírios governistas e rebeldes, milícias curdas sírias e iraquianas e de soldados iraquianos iniciou um contra-ataque massivo aos jihadistas.

Em combates brutais que se estenderam de 2015 a 2018, como as sangrentas batalhas de Aleppo, Fallujah e Mossul, o EI foi sendo consistentemente derrotado pela coalizão e forçado a recuar diante de seu avanço. O ataque conjunto foi avassalador e o EI foi desestruturado como poder dominante na região e forçado por seus inimigos a regressar a táticas de insurgência com o objetivo de garantir alguma sobrevida à organização.

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Créditos: Alkis Konstantinidis/Reuters – Fonte: The Atlantic

Fragmentação

Apesar de sua incontestável derrota militar na guerra convencional, o ápice da organização representou também a possibilidade do grupo se espalhar pelo mundo através do estabelecimento de ramos. A partir de 2014, uma grande quantidade de grupos salafistas pelo mundo declararam apoio ao EI e foram incorporados à sua estrutura.

Conhecidos como Províncias, esses ramos se encontram nas mais diversas partes do mundo, desde a Província da África Ocidental, na qual simpatizantes do Boko Haram nigeriano se integraram, até a Província da Ásia Oriental, incorporando membros do Abu Sayyaf nas Filipinas. Porém, a província que tem maior pertinência na discussão sobre o atentado em Moscou é a de Khorasan.

O que é o EI-K?

Fundado em 2015, o Estado Islâmico – Província de Khorasan (EI-K) tem por objetivo estabelecer o domínio de sua organização maior sobre a região histórica homônima, a qual abrange partes do Irã, do Afeganistão, do Tajiquistão, do Turcomenistão e do Uzbequistão. A macrorregião tem importância histórica para o Islã, sendo o berço de grandes impérios islâmicos como o Califado Abássida e o Império Timúrida.

A área de atuação do EI-K é focada em Irã, Afeganistão e Paquistão, onde se localizam rivais religiosos e ideológicos de seu projeto salafista. Assim sendo, o grupo é um inimigo ferrenho do regime dos Aiatolás, por seguirem a vertente xiita do islamismo, e do Talibã, devido a discordâncias quanto a uma percebida postura nacionalista e isolacionista.

Decerto, os ataques do EI-K são direcionados quase exclusivamente com a finalidade de enfrentar seus inimigos locais. Desde a desastrosa retirada dos EUA de Kabul em 2021, o EI-K se mostrou o maior desafio enfrentado pelo Talibã para controlar efetivamente o Afeganistão. Além disso, o grupo assumiu a autoria de um ataque em Kerman que vitimou 95 iranianos em janeiro de 2024.

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Fonte: The Times of Israel

Mas por que atacar a Rússia?

No contexto da atuação cada vez mais ousada do EI-K, o grupo visou atingir um alvo de grande significância: a Rússia. Por causa de sua atuação antagônica ao EI na Síria, de ser uma potência cristã “inimiga da fé” e estar com seu poderio militar voltado para uma guerra de alta intensidade na Ucrânia, a Rússia se mostrou um alvo factível e simbólico a ser atingido pelos fundamentalistas.

Ademais, o interesse em atacar Moscou também advém da ótica de enfraquecer e desmoralizar aliados de seus inimigos em Damasco, Teerã e Kabul. O fato de haver uma ligação terrestre possível entre as áreas de atuação do EI-K e a capital russa também foi um fator que contribuiu para a seleção do Crocus City Hall como alvo.

 

Repercussão internacional

Embora muitos ramos do EI realizem ataques de maneira corriqueira no Sul Global, o atentado em Moscou deve ser interpretado como um alerta ao Norte. O risco à paz desses países, na figura do fundamentalismo islâmico, está de fato derrotado?

Diante desse contexto, pode-se dizer que o EI ainda representa um risco à segurança global, agravado pela efervescência de conflitos pelo mundo. Se o caos no Iraque fomentou a ascensão do Terror, o que aconteceria com o fundamentalismo se persistir a tendência crescente de guerras?

A liderança do Norte Global que se manifestou mais abertamente sobre o ataque em solo russo foi Emmanuel Macron, presidente da França. Por seu país sediar os Jogos Olímpicos de 2024, o chefe de Estado revelou em entrevista sua profunda preocupação quanto à segurança do evento. Decretando nível máximo de alerta, ele também revelou que o grupo já havia tentado, por diversas vezes nos últimos meses, cometer atos terroristas na França.

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Créditos: Jacques Demarthon/AFP/Getty Images – Fonte: CNN

Nesse sentido, as preocupações do presidente francês, Emmanuel Macron, se mostram como um símbolo maior dessa questão. O país, que fora palco de alguns dos mais terríveis atentados perpetrados pelo EI, é justificado em seu temor relativo à possibilidade de um ataque durante os Jogos Olímpicos de Paris de 2024. Mas se esse for o caso, isso não significaria, em si, uma vitória do Terror?

Referências:

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