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A Morte do Multilateralismo

A Morte do Multilateralismo

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por Matheus Veríssimo e Fernanda Tashima

O que é multilateralismo?

A conjuntura internacional atual apresenta grandes desafios ao princípio do multilateralismo, de modo que alguns declararam a sua morte. Mas antes de passar quaisquer julgamentos sobre essa questão, convém entender melhor o que é o multilateralismo, quais suas iterações ao longo da história e quais são os desafios enfrentados por ele na conjuntura presente.

Sinteticamente, para John Ruggie (professor em Estudos Jurídicos Internacionais na Faculdade de Direito de Harvard), o multilateralismo pode ser conceituado como relações coordenadas e institucionalizadas entre três ou mais estados. Para além dessa conceituação simplificada, algumas características distinguem essa forma de organização das demais, dentre elas a existência de um coletivo indivisível de membros, a presença de regras e princípios generalizados de conduta compartilhadas por seus integrantes e a reciprocidade difusa, havendo aproximadamente as mesmas vantagens para todos os estados envolvidos.

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Créditos: Loey Felipe/UN Photo

As experiências multilaterais

Este conceito pode ser exemplificado com algumas de suas principais iterações na contemporaneidade: a Liga das Nações e a Organização das Nações Unidas. Ambas organizações, surgidas, respectivamente, no prelúdio da Primeira e da Segunda Guerra, são tentativas de estabelecer organismos multilaterais, que se baseiam na cooperação entre estados e no diálogo entre as partes, visando o cumprimento de objetivos comuns a todos os seus integrantes.

A Liga das Nações, ou Sociedade das Nações, foi a primeira organização internacional de bases permanentes, cujo objetivo era instituir um sistema de segurança coletiva e assegurar a paz entre os Estados. Por diversos motivos, como a não inclusão de potências importantes (como os EUA), as negociações paralelas e o flagrante boicote de suas deliberações, a Liga foi se tornando cada vez mais inoperante e disfuncional. No final dos anos 1930, a desmoralização atingiu seu ápice, com a eclosão da Segunda Guerra Mundial simbolizando o fracasso fatal dessa instituição.

Oficialmente desativada em 1946, a Liga foi sucedida pela atual ONU, organização internacional criada com os mesmos propósitos de sua antecessora, somando-se os objetivos de desenvolver relações amistosas entre as nações, promover a cooperação internacional para resolver problemas reconhecidamente comuns e defender os direitos humanos e as liberdades fundamentais de todas as pessoas. Ela conta, atualmente, com 193 países-membros e mais 2 estados-observadores, abrangendo todos os estados-nação de amplo reconhecimento internacional e se divide em diversos órgãos e agências, com funções e atribuições próprias.

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Tratado de Versalhes de 1919

O impasse na ONU

Diante do breve histórico do multilateralismo na contemporaneidade, podemos mergulhar em algumas problemáticas que ele vem encontrando. Nesse sentido, os impasses e o congelamento do Conselho de Segurança (CS) da ONU demonstram bem alguns dos entraves na cooperação internacional, ainda mais quando se considera que este órgão é o responsável por questões de paz e segurança internacional, sendo o único capaz de adotar resoluções vinculantes aos seus membros, isto é, decisões com força de lei.

Antes de tudo, é importante entender a estrutura do CS, seu funcionamento e sua importância para a comunidade internacional. O órgão possui 15 membros, dos quais 10 são temporários e 5 são permanentes (EUA, China, Rússia, Reino Unido e França), e suas resoluções são aprovadas com um mínimo de 9 votos e sem que nenhum dos membros permanentes levante seu poder de veto. O órgão delibera sobre assuntos de segurança e conta com poderes extensos, como a imposição de sanções econômicas a países, a declaração de cessar-fogos e o decreto de intervenções militares da ONU.

Posto esse arranjo, um dos principais pontos de tensão é o poder de veto dos 5 países permanentes, o que concede a essas grandes potências a possibilidade de usar dessa prerrogativa em favor de seus interesses particulares. Isto muitas vezes acaba dificultando a atuação da ONU na resolução de conflitos que assolam porções expressivas da população mundial.

Nesse sentido, o caso das tentativas de resolução por um cessar-fogo em Gaza mostram-se enigmáticas, com os EUA empregando esse veto de modo a barrar diversas resoluções que exigiam o fim da ofensiva israelense. Como se não bastasse isso, resoluções posteriores redigidas por Washington, certamente mais simpáticas a Israel, foram vetadas por China e Rússia. Fato inegável é que as manobras diplomáticas acabaram prolongando as hostilidades entre Tel Aviv e o Hamas, as quais custaram a vida dezenas de milhares de civis inocentes no fogo cruzado.

Para além dos vetos, a complexidade das negociações entre os países e a dificuldade em se mobilizar coalizões efetivas para responder a crises também é um fator que contribui para a morosidade no CS. O caso do Haiti, que vem sofrendo com uma terrível onda de violência armada nos últimos meses, é outro ponto de crítica, pois, apesar da renovação da autorização para a Missão Multinacional de Apoio à Segurança do Haiti sob liderança do Quênia, a nação africana vem encontrando dificuldade em angariar apoio para a intervenção na América Central. Soma-se a isso a reticência da China e da Rússia diante da proposta de uma missão de paz da ONU, uma alternativa que poderia auxiliar na legitimação do apoio a Porto Príncipe, e temos um cenário bem sombrio para o país.

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Veto estadunidense sobre uma resolução de cessar-fogo em Gaza

Créditos: Angela Weiss/AFP via Getty Images

A crise de legitimidade das instituições

Outra questão pertinente para a análise dos desafios enfrentados pelo multilateralismo é o questionamento da legitimidade das instituições do sistema internacional. Com efeito, essas contestações tomam diversas linhas argumentativas, como alegar a não representatividade democrática plena nos organismos vigentes, de modo a relativizar a cooperação verdadeiramente global, sendo isso notado em múltiplos contextos (sanitário, militar e dentro do próprio Direito Internacional).

Um exemplo latente desse tipo de ataque pode ser visto na história recente, durante o período da pandemia da COVID-19, na qual a OMS sofreu diversos ataques à autoridade de seus especialistas e suas determinações por lideranças como Trump e Bolsonaro. O Diretor-geral da agência, Tedros Adhanom, encontrou forte resistência por parte de setores políticos dos países vinculados a OMS, o que fomentou a percepção de atuação falha de seu órgão na crise, bem como ilustrou um despreparo dos sistemas multilaterais na gestão da emergência.

Além do caso crítico da OMS na pandemia do Covid-19, problemas crônicos são enfrentados por outras agências da ONU, como a falta de verbas para financiar a ação dessas instituições. Um caso marcante desse tipo de problema é o enfrentado pela ACNUR em seu esforço de apoio aos refugiados do conflito do Sudão, estimados em cerca de 10 milhões, e àqueles em vulnerabilidade alimentar em decorrência do conflito, montante que pode chegar à marca de 16 milhões de pessoas. A negligência internacional na resposta à crise no país africano é inegável, com apenas 25% da verba requisitada para as ações humanitárias tendo sido entregues em setembro de 2024.

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Diretor-Geral da OMS, Tedros Adhanom

Créditos: F. Coffrini/AFP

Os acordos desmoralizados

Um outro aspecto digno de análise diz respeito aos acordos multilaterais entre os países, os quais vêm se mostrando inócuos no cumprimento de seus objetivos e cada vez mais incertos em seu comprometimento. Um grande caso nesse sentido é o Acordo de Paris, aprovado em 2015 pelos 195 países da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima para reduzir a emissão de gases de efeito estufa no contexto do desenvolvimento sustentável – assunto inegavelmente multilateral devido ao fato das mudanças climáticas não reconhecerem fronteiras.

Nesse acordo foi assumido o compromisso de manter o aumento da temperatura média global em menos de 2°C acima dos níveis pré-industriais e de envidar esforços para limitar o aumento da temperatura a 1,5°C acima dos níveis pré-industriais. Entretanto, o último relatório disponibilizado pelo Serviço de Mudanças Climáticas Copernicus afirmou que o ano de 2024 deve superar 2023 como o mais quente da história, além de destacar que as temperaturas globais ficaram mais de 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais, “quebrando” a meta estipulada em Paris. Tudo isso demonstra um inequívoco fracasso na cooperação dos países em adotar políticas que, de fato, consigam atingir as metas estabelecidas.

Somado a isso, as pressões políticas contrárias a seguir as metas e políticas determinadas no Acordo de Paris eram enormes, com o caso mais notório sendo o do então presidente Donald Trump, que retirou os EUA do pacto em 2017. De fato, o seu sucessor, Joe Biden, trouxe Washington de volta para as determinações do acordo, mas o impacto deslegitimador da saída anterior já era concreto, e o vindouro retorno de Trump à Casa Branca pode significar uma segunda saída do acordo.

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Donald Trump, 45o Presidente dos EUA, eleito para um segundo mandato a ser iniciado em janeiro de 2025

Créditos: Rick Bowmer/Associated Press

O multilateralismo está morrendo?

De fato, no momento atual o multilateralismo está sob os holofotes das críticas, mas lidar com as relações internacionais nunca foi ou será uma tarefa fácil. Desde o início da globalização, processo de interação mundial que liga pilares como a economia, cultura, nação e política de Estados, lidar com as diferenças e contrastes entre interesses se mostrou complexo. Afirmar que o multilateralismo está morrendo seria pressupor que no início de seu surgimento obtivemos sucesso em mantê-lo pujante, e ao analisar a história das relações internacionais, nota-se que nunca foi tão simples assim.

O multilateralismo realmente vive uma situação mais problemática e complexa, mas não faltam Estados que se mostram dispostos a cooperar entre si e direcionar forças para pensar em soluções para os problemas contemporâneos. Além disso, esse esforço deve ser especialmente cobrado daqueles que detém mais poder no cenário internacional: a responsabilidade e carga de culpa pelos fracassos do multilateralismo deve ser maior acarretada a estes, visto que decidem o rumo do jogo das relações internacionais nos momentos mais críticos.

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Créditos: Eric Lee/Reuters

Referências

  1. https://multilateralismus.com/en/glossary-entries/ruggie#:~:text=Ruggie%20conceptualizes%20multilateralism%20as%20coordinated,between%20three%20or%20more%20states.
  2. https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/LIGA%20DAS%20NAÇÕES.pdf
  3. https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/politicas-para-mulheres/arquivo/assuntos/acoes-internacionais/Articulacao/articulacao-internacional/onu-1/ONU%20-%20atualizado.pdf
  4. https://www.oas.org/dil/port/1945%20Carta%20das%20Nações%20Unidas.pdf
  5. https://www.nexojornal.com.br/index/2024/04/06/conselho-de-seguranca-onu-o-que-e 
  6. https://edition.cnn.com/2024/03/22/middleeast/us-gaza-ceasefire-proposal-veto-intl/index.html 
  7. https://press.un.org/en/2024/sc15838.doc.htm 
  8. https://www.aljazeera.com/opinions/2024/5/20/amid-global-polarisation-the-pandemic-agreement-encourages-cooperation 
  9. https://www.theguardian.com/news/2020/apr/10/world-health-organization-who-v-coronavirus-why-it-cant-handle-pandemic 
  10. https://www.unhcr.org/news/press-releases/global-community-urge-action-escalating-sudan-crisis-un-general-assembly 
  11. https://www.unicef.org/press-releases/un-agencies-warn-spiraling-sudan-crisis-civilians-face-grave-risks-and-famine-threat 
  12. https://antigo.mma.gov.br/clima/convencao-das-nacoes-unidas/acordo-de-paris.html 
  13. https://www.trendsce.com.br/2024/11/07/c3s-2024-deve-ser-o-ano-mais-quente-da-historia/
  14. https://www.dw.com/pt-br/o-acordo-de-paris-para-o-clima-foi-quebrado/a-68217048

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