Eleições e Conflito: Moçambique na Encruzilhada da Democracia
Escrito por: Maria Beatriz Turci e Nilton Mate
Desde as eleições de 9 de outubro de 2024, Moçambique enfrenta intensos protestos e um cenário de instabilidade política. O partido FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), que governa o país desde a independência em 1975, foi declarado vencedor, com Daniel Chapo recebendo mais de 70% dos votos, de acordo com a comissão eleitoral. O principal adversário, Venâncio Mondlane, do partido Podemos, obteve 20% dos votos e contestou os resultados, alegando fraude. A divulgação do resultado desencadeou manifestações lideradas por Mondlane e seus apoiadores, em grande parte jovens insatisfeitos com o governo. Em resposta, o governo intensificou a repressão, que tem sido marcada pela violência. Confrontos entre manifestantes e forças de segurança já resultaram em dezenas de mortos e centenas de feridos. A polícia tem utilizado gás lacrimogêneo, balas reais e até helicópteros para dispersar os protestos, inclusive em áreas residenciais
A repressão também atingiu a liberdade de expressão, com bloqueios de internet e censura à mídia tradicional. Nesse cenário, as redes sociais surgiram como uma ferramenta alternativa para a organização e mobilização dos protestos, apesar das tentativas governamentais de restringir seu uso. A crise chamou a atenção internacional: a África do Sul fechou temporariamente suas fronteiras, enquanto a SADC (Comunidade de Desenvolvimento da África Austral) prepara uma reunião para discutir a situação. Contudo, a insatisfação popular vai além das acusações de fraude eleitoral, refletindo frustrações com a desigualdade econômica e a má distribuição de riquezas, concentradas em uma elite política. A juventude, em especial, tem se mobilizado por mudanças, enfrentando um governo acusado de priorizar a manutenção do poder em detrimento das demandas populares. A crise reflete uma luta por democracia e justiça social, com os protestos exigindo reformas estruturais e a garantia de direitos básicos. No entanto, a intensificação da repressão aumenta o risco de escalada da violência, ameaçando tanto a estabilidade interna quanto as relações regionais. Instituições internacionais e religiosas têm apelado por diálogo e soluções pacíficas que respeitem a vontade popular.
O atual cenário de crise em Moçambique possui raízes históricas profundas, moldadas pela colonização, pela guerra civil e por décadas de domínio político do FRELIMO. Desde a independência de Portugal, em 1975, o partido assumiu o poder como partido único, com uma orientação socialista influenciada pelos ideais de libertação. No entanto, o período pós-independência foi turbulento. De 1977 a 1992, o país enfrentou uma guerra civil brutal, alimentada por tensões internas e intervenções estrangeiras durante a Guerra Fria. Á época, a RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana) emergiu como a principal força de oposição, com apoio de atores externos, como o regime do apartheid da África do Sul e potências ocidentais. Esses apoios foram motivados pela postura da FRELIMO, que estreitou laços com a ex-União Soviética e passou a ser caracterizada no sistema internacional como um movimento marxista-leninista (Cau, 2011, p. 31).
A guerra civil devastou o país, resultando em centenas de milhares de mortes, o deslocamento de milhões de pessoas, e uma infraestrutura colapsada. A paz chegou apenas em 1992, com o Acordo Geral de Paz mediado pela ONU, permitindo que Moçambique realizasse suas primeiras eleições multipartidárias em 1994. Contudo, a FRELIMO continuou a vencer sucessivamente todas as eleições, estabelecendo um domínio político e econômico. Esse domínio, no entanto, não foi sem críticas: denúncias de fraude eleitoral e manipulação política passaram a ser frequentes. Note-se que, uma nota da Agência de Informação de Moçambique (AIM) aponta que o presidente do Tribunal Supremo (TS), Adelino Muchanga, afirmou que até o dia da votação, pelo menos 42 casos de ilícitos eleitorais tinham dado entrada nos tribunais em todo o território moçambicano, desde o início do processo eleitoral – marcado pelo arranque do recenseamento. Com efeito, ao longo dos anos, a oposição — especialmente a RENAMO e, mais recentemente, o partido Podemos — passou a acusar a FRELIMO de se apropriar das estruturas estatais para manter o poder. A concentração de riqueza e a exploração de recursos naturais, como gás natural e carvão, aumentaram o fosso entre a elite governante e a população, especialmente nas regiões norte e central. Apesar dos vastos recursos naturais, Moçambique permanece um dos países mais pobres do mundo, com altos níveis de desemprego juvenil e acesso limitado a serviços básicos.
A recente eleição presidencial de outubro de 2024 trouxe à tona essas tensões latentes. Venâncio Mondlane, ex-membro da RENAMO e agora principal líder da oposição pelo partido Podemos, conseguiu apoio popular, especialmente entre os jovens, ao prometer alternância de poder e reforma política. No entanto, a vitória da FRELIMO com 70% dos votos gerou suspeitas de fraude, especialmente porque observadores nacionais e internacionais relataram irregularidades no processo eleitoral. Com isso, a oposição — apoiada por uma população descontente — iniciou uma série de manifestações. Mondlane, se posicionando como porta-voz da mudança, alegou que os resultados não representavam a vontade popular e denunciou o governo por manipulação. A repressão policial, que incluiu a dispersão de manifestantes com balas de borracha, balas verdadeiras/reais, gás lacrimogêneo, e bloqueios de comunicação, intensificou ainda mais a tensão, resultando em confrontos violentos, mortes, e inúmeras detenções.
A situação em Moçambique, portanto, não é apenas uma crise eleitoral, mas o ápice de décadas de um governo monolítico, marcado por desigualdades, corrupção e um sistema que muitos consideram intransigente. O desejo de alternância de poder representa a aspiração de uma população cansada de um regime que não vê atender às suas necessidades. Essa dinâmica entre controle governamental e demandas populares por justiça, democracia e igualdade têm desenhado o cenário atual de Moçambique, colocando o país em uma encruzilhada crítica que desafia tanto a governabilidade quanto a estabilidade regional.
No que concerne aos procedimetos adotados pela Comissão Nacional de Eleições (CNE), o Boletim de eleições publicado pelo Centro de Integridade Pública (CIP), uma organização não-governamental moçambicana que monitoriza os processos eleitorais, aponta que o Bispo Matsinhe, Presidente da Comissão Nacional de Eleições (CNE), voltou a votar a favor de resultados fraudulentos da FRELIMO. Considera-se ser a segunda vez que Carlos Matsinhe vota favoravelmente pela aprovação dos resultados eleitorais fraudulentos. A primeira vez foi nas eleições autárquicas do ano passado (2023). Neste contexto, os seis representantes da oposição na CNE exigiram a recontagem de votos nas mesas onde se registraram discrepâncias de números de votos, a requalificação dos votos nulos e a anulação dos resultados eleitorais.
A fonte afirma ainda que os representantes da oposição na CNE apresentaram 10 argumentos para a não aprovação dos resultados das eleições de 9 de Outubro, dos quais destacam-se os seguintes:
- A marginalização dos técnicos indicados pelos partidos da oposição nos STAE (Secretariado Técnico de Administração Eleitoral), a todos os níveis, sobretudo nos CPD (Centros de Processamento de Dados), locais onde é feito o armazenamento de dados eleitorais;
- A selecção dos MMV (Membros de Mesas de Votos) foi feita com base em listas fornecidas pelo partido Frelimo, operacionalizadas pelos directores distritais dos STAE, em claro atropelo às normas eleitorais, o que contribuiu para a promoção da fraude no sistema eleitoral;
- A colocação tardia dos MMV da Renamo e do MDM. Em alguns casos foram escorraçados pelos observadores do CNJ (Conselho Nacional da Juventude), que se entendem ser elementos da Frelimo que circulam pelas mesas dando ordens ilegais e fora do seu âmbito de observação eleitoral;
- A circulação de boletins pré-votados, fora do controlo dos órgãos eleitorais, e o enchimento de urnas com a conivência dos presidentes de mesas de votos e dos directores do STAE;
- A discrepância significativa do número de votantes entre as três eleições: Presidencial, Parlamento e Assembleia Provincial. As diferenças são significativas em algumas províncias;
- Presença de números de eleitores acima dos inscritos nos cadernos eleitorais. O caso mais gritante é de uma mesa de Harare, Zimbabwe (um país vizinho de Moçambique), onde votaram 750 eleitorais, quando o caderno só tinha 595 eleitores inscritos;
- A ausência de mapas de centralização de resultados, mesa por mesa, ao nível dos distritos, e um número elevado de votos em branco e nulos, o que pode configurar falta de transparência no processo;
- Na Assembleia Nacional os mandatários da oposição foram dispensados sem terem acompanhado a apresentação das actas que lhes dariam oportunidade de verificarem as suas reclamações, submetidas anteriormente;
- A não verificação, pelo STAE, das dúvidas levantadas em plena sessão de apuramento com recurso aos meios informáticos.
Não obstante, os editais terem sido entregues ao Presidente da Comissão Nacional de Eleições, dom Carlos Matsinhe, no passado dia 8 de Novembro, segundo o Boletim n.º 335 | 12 de Novembro de 2024 do CIP, até às 14 horas do dia 11 de novembro de 2024 ainda não tinham sido encaminhados ao Conselho Constitucional. Quando os referidos documentos foram entregues ao Conselho Constitucional, este constatou certas discrepâncias. Diante destas irregularidades, o Boletim n.º 333 | 06 de Novembro de 2024, do CIP afirma que através de despacho de 5 de Novembro em curso, a presidente do Conselho Constitucional deu 72 horas ao presidente da Comissão Nacional de Eleições, dom Carlos Matsinhe, para esclarecer “as razões da existência de discrepâncias do número de votantes entre as eleições presidenciais, legislativas e das assembleias provinciais” nas actas e editais submetidos ao Conselho Constitucional.
Entretanto, segundo os vogais, o Presidente da CNE entregou ao Conselho Constitucional, o expediente sobre esclarecimentos das irregularidades sem que estes tivessem conhecimento do conteúdo da fundamentação sobre discrepâncias dos resultados eleitorais visto que o referido Presidente não partilhou com todos os vogais da CNE os documentos da sua fundamentação em relação à discrepância dos números referentes à eleição do Presidente, Assembleia da República e da Assembleia Provincial, embora tivesse que o fazer por força da lei. Assim, espera-se que o Conselho Constitucional se pronuncie, dentro de uns 20 dias, sobre a situação eleitoral em Moçambique. Ou seja, de acordo com as conclusões a que chegar, este órgão poderá validar ou invalidar os resultados eleitorais em causa. Enquanto isso, Moçambique vai seguindo com situações de manifestações, onde muitos dos manifestantes têm sido detidos, feridos e mortos a tiros.
Notas
https://www.cipeleicoes.org/wp-content/uploads/documentos/Boletim-Suplemento-4-.pdf
Um dos pontos discutidos no Acordo Geral de Paz (AGP) foi a composição da CNE por representante dos principais partidos. Acreditava-se que desta forma, garantir-se-ia a transparência deste órgão.
Os membros da Comissão Nacional de Eleições, de acordo com a legislação, são designados da seguinte forma:
a) cinco representantes da FRELIMO; b) dois representantes da RENAMO; c) um representante do MDM; d) um Juiz indicado pelo Conselho Superior da Magistratura Judicial; e) um Procurador indicado pelo Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público; f) três membros das organizações da sociedade civil.
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