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A Etiópia e o Pan-Africanismo

escrito por André Serafim e Raquel Zaleschi

 

História da Etiópia

Conhecida como o país mais antigo do mundo, a Etiópia possui uma bagagem histórica mosaica, que foge da mediocridade da posição de inferioridade que o continente africano é condenado a ocupar aos olhos da sociedade eurocentrada. A singularidade do país da África Oriental contribui imensamente para uma interpretação categórica do movimento pan-africanista, e compreender a trajetória do movimento demanda passar pela relação entre a Etiópia e o pan-africanismo.

Para compreender o papel que a Etiópia desempenhou no movimento identitário africano é necessário compreender a trajetória do Império da Etiópia. O império etíope herda elementos históricos e culturais do império cristão de Axum, considerado um dos quatro grandes impérios do mundo, junto do Império Romano, Grego e Chinês, devido ao seu poder comercial, controlando as transações do Mar Vermelho e cunhando moedas, tendo formado o traço central e religioso da Etiópia. 

Contudo, em detrimento das convenções acadêmicas, é possível considerar os solominidas como antecedentes oficiais do Império Etiope. Assim como diversas outras nações do Sul global, os solomonidas atribuem uma relação íntima entre a história da Etiópia e a história do cristianismo. O cristianismo ocupa um papel de protagonismo na identidade política, cultural e religiosa do país, característica essa que desmistificou prontamente a ideia de um isolamento político e histórico africano, servindo como característica diferenciadora deste povo em relação aos outros, que estavam sob crescente influência muçulmana. 

Ao analisar os primórdios da estereotipização do povo não ocidental destaca-se a figura de Prestes João, um governante cristão, bom e justo de um reino distante. Essa figura histórica mística é a materialização do reflexo da visão de mundo ocidental europeia em um período em que a Europa ainda não tinha uma familiaridade com o oriente. No século quinze a figura de Prestes João passa a ser aplicada à Etiópia, contudo, os conterrâneos do país expressaram inúmeras vezes abertamente as suas recusas ao título. 

A figura europeia de Prestes João
Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Preste_Jo%C3%A3o#/media/Ficheiro:Prester_John.jpg

No fim do século XIX, por serem recém unificados, os italianos entraram tardiamente na corrida imperialista e ao encarar o continente africano já majoritariamente dominado pelas outras potências europeias, fizeram do território etíope o seu alvo. 

A invasão italiana se deu após o envolvimento da Itália na crise sucessória do Império Etíope, iniciada com a morte do imperador Yohannes IV, ou João IV, em 1889. Os italianos forneceram apoio e suprimentos militares para Sahle Mariam, que se firmou imperador como Menelik II. Os laços de cooperação estreitaram-se com o Tratado de Wichale, ou Ucciali, que trazia significativas divergências entre suas versões em italiano e em amárico. Nele, a Etiópia reconheceu a posse italiana da Eritreia, e a Itália prometeu um empréstimo para o país africano. A crise entre o novo imperador e a nação europeia se deu por conta do Artigo XVII, em que Menelik II via garantida aos etíopes a escolha de convocação dos italianos ao lidar com outras potências europeias (britânicos e franceses detinham territórios fronteiriços); já os italianos o interpretavam como a declaração da Etiópia como protetorado. Assim que evidenciado o mal-entendido, os laços diplomáticos foram suspensos e uma invasão italiana foi orquestrada. Os etíopes, no entanto, contavam com forças mais numerosas e modernamente equipadas, o que levou à vitória na Batalha de Adwa, marco final do conflito. 

Pintura etíope sobre a Batalha de Adwa
Fonte: https://www.si.edu/object/nmafa_2004-7-60

Em fins de 1934, um conflito fronteiriço (que ficou conhecido como o Incidente de Wal Wal) entre a Etiópia e a Somalilândia, posse italiana, proveu pretexto para uma segunda invasão, por parte da, agora, Itália de Mussolini. A guerra que se seguiu enquadra-se nos antecedentes da Segunda Guerra Mundial, exemplificando o ímpeto expansionista fascista e a falência da Liga das Nações, uma vez que a Etiópia apresentou uma denúncia à organização, que condenou a Itália e ordenou sanções, que não foram postas em prática.

No conflito armado, que durou de 1935 a 1936, as forças etíopes não foram capazes de conter o avanço italiano, que logo tomou a capital, Addis Ababa. Com a derrota, o imperador Hailé Salassié e seu governo foram para Londres, de onde formaram um governo em exílio. O país retomaria plena independência apenas em 1944, quando os britânicos, que auxiliaram na expulsão dos italianos em 1941, deixariam de considerá-lo território inimigo ocupado.

Soldados etíopes durante a o conflito com a Itália
Fonte: https://www.blackpast.org/global-african-history/second-italo-abyssinian-war-1935-1936/

Ao observar o desenho histórico etíope, é possível compreender com maior facilidade a relevância desse país para o movimento pan-africanista. O simbolismo de sua história, a tradição, a cultura, a organização política e as relações que o país estabeleceu com comunidades externas a ele serviram como inspiração para a formação do caráter irreverente celebrado posteriormente pelo movimento. 

 

Panorama: Pan-Africanismo

Foi em Londres no ano de 1900, durante um conferencia de intelectuais negros, que o termo Pan-Africanismo foi usado pela primeira vez. Sylvester Williams foi o advogado trinitário que pioneiramente cunhou o termo ao discursar a respeito do direito dos nergos de possuir uma terra e personalidade própria. Essa reivindicação reverberou pela comunidade intelectual e desencadeou-se em uma série de ideias formuladas por pensadores, especialmente britânicos e norte-americanos, que por meio do código do opressor, reivindicavam os direitos dos oprimidos, formando a primeira geração do movimento pan-africano.

A cartilha do movimento Pan-Africano pode ser definida, macroscópicamente, como contemplativa de três esferas do pensamento: a esfera filosófica, a  política, e social. A partir da interligação dessas esferas, o movimento contempla a interligação da África como um todo, tendo em vista a diáspora africana, promovendo a união do continente e dos valores sociais e culturais que o compõem, visando intensificar a sua expressividade na comunidade internacional, almejando que com isso as suas reivindicações sejam mais facilmente acatadas.

Durante a primeira fase do movimento, as esferas mais abrangidas pelos idealistas eram as filosóficas e sociais. Centrados no papel do “negro na escala global’’, os pensadores dessa fase, intelectuais negros imersos nas cenas acadêmicas de prestigio da época, encabecaram os dois lemas que se tornaram os pilares do movimento: Liberdade e Integração. Foi na França, durante o I Congresso Pan-africano, organizado em Paris, em 1919, que sob a liderança de W.E.B. Du Bois,  esses pilares foram estabelecidos e difundidos em uma escala exponencial. 

Entretanto, a segunda fase do Pan-Africanismo contemplou um mundo diferente. Imersos no cenário pós Segunda Guerra Mundial, os idealistas voltaram os seus olhares para a indignação que perdurava nas aspirações pan-africanistas da época: mesmo após o cenário mundial se reduzir às cinzas e grandes estruturas de poder colapsarem, algumas das estruturas de opressão colonial na África continuavam. Também se levantou a questão de uma maior participação feminina no movimento, dando o espaço para mulheres como a ativista Amy Ashwood Garvey, que expandiu o debate da identidade negra para os campos de gênero, classe e sexo, sofisticando a autodeterminação pan-africana. 

A ativista Amy Ashwood Garvey
Fonte: https://www.pbs.org/wgbh/americanexperience/features/garvey-ashwood/

Ao todo, ocorreram sete Congressos Pan-Africanos, sete oportunidades para pensadores, ativistas e intelectuais expressarem as suas visões acerca da questão africana e questionamentos a respeito do papel que os países da África ocupavam e deveriam ocupar na comunidade internacional, visando a construção de estruturas soberanas para os negros que vivem ou não na África. Esse questionamento levou o grupo de pessoas a revisitar a história da África, o que acabou por descolar a trajetória do continente mais antigo do mundo dos revisionismo colonialistas e seus anacronismos preconceituosos.

Dentre os sete Congressos Pan-Africanos realizados, o que ocupou um papel de protagonismo foi o quinto. Realizado em 1945, em Manchester, Inglaterra, o V Congresso se destaca pelo legado que ele deixou na luta anti-imperialista, nacionalista e autodeterminista africana baseada no revisionismo histórico. Participaram do Congresso os líderes da independência de países como Quênia, Malawi e Gana.

Para ilustrar o tom do evento, vale a pena ler um trecho da resolução do quinto Congresso: 

Não temos vergonha de termos sido um paciente povo que aguardou eras; estamos dispostos, até mesmo agora, a sacrificar e buscar corrigir nossas falhas extremamente humanas; mas não estamos dispostos a continuar com fome enquanto labutamos para o mundo, de modo a dar suporte pela nossa pobreza e ignorância a uma falsa aristocracia e um imperialismo desacreditado.”

Símile da declaração advinda do V Congresso
Fonte: https://credo.library.umass.edu/view/full/mums312-b107-i46

Ao observar a história contemporânea, é inegável o legado do pan-africanismo no curso da história mundial. Desde inspiração para a estruturação dos movimentos de independência de países africanos e asiáticos, até a influência na expansão da arte negra identitária, até a criação da Organização da Unidade Africana, criada em 1963, e que em 2002 foi substituída pela União Africana, que perdura até os dias de hoje, da qual participam 55 países membros que carregam o legado de liberdade e integração do pan-africanismo no cenário contemporâneo internacional.

 

 Etiópia e o Pan-Africanismo

Antes da primeira das invasões italianas, ocorrida em 1895, a Etiópia encontrava-se em uma situação peculiar: permanecia como o único território independente na África (a Libéria, na teoria, tinha também independência; porém, na prática, era posta sob o jugo da Firestone Rubber Company, empresa estadunidense), mas suas elites intelectuais permaneciam distantes dos debates que fomentavam os pensadores pan-africanistas no Novo Mundo, ou movimentos de resistência à dominação europeia do continente. 

Na verdade, o protagonismo que os etíopes viriam a assumir no imaginário e projetos de uma Pan-África não deve ser visto como natural ou inevitável. Sendo a Etiópia, ou melhor, o Império Etíope, uma civilização que já contava com séculos de independência e protagonismo na região do Chifre da África, e permanecendo o único ente não dominado por europeus, o país não se via espelhado na causa dos primeiros proponentes do pan-africanismo. Etíopes não foram raptados e mandados às Américas; uma fé cristã não lhes foi imposta; seu território não fora pisado por botas brancas. Assim, o que teria de etíope nos dramas da África do Sul, do Congo belga, dos abolicionistas americanos?

Essa distância não significa que a Etiópia não estivesse já no ideário negro. O movimento etíope foi uma corrente religiosa cristã que colocava ênfases divinas no sofrimento de todos os africanos. Ela concebia, com uma de suas bases no Salmo 68 (“Príncipes vêm do Egito; a Etiópia corre a estender mãos cheias para Deus”, Salmos 68:31), que há uma aliança entre Deus e os filhos da África espalhados pelo globo, e que Ele viria em seu socorro para tira-los da opressão. Vale notar que a busca de um cristianismo que espelhasse uma identidade negra veio em formas diferentes: nas Américas, era uma questão de criar espaços cristãos em que tivesse palco a situação dos negros no continente, como foi o caso da Igreja Batista Abissínia em Nova York, fundada em 1800; já na África, se tratava de criar igrejas que não sofressem interferências de missionários europeus, como era a Igreja Etíope da África do Sul, originada em 1892.

Ainda assim, o papel da 1° Guerra Ítalo-Etíope foi um marco no envolvimento do país em um imaginário pan-africano; principalmente, foi um marco pois abriu caminhos para um envolvimento maior das elites da Etiópia com os negros do resto do mundo.

A resistência e sucesso da única nação livre africana contra uma potência europeia teve enorme repercussão entre os demais africanos e afrodescendentes. Tal vitória em fins do XIX assumiu contornos simbólicos similares à Revolução Haitiana, do começo do século. Ambos representavam a força dos negros contra mazelas impostas pelos brancos: o Haiti, contra a escravidão transatlântica; a Etiópia, contra o imperialismo na África.

Símbolo de resistência, a Revolução Haitiana
Fonte: https://www.britannica.com/topic/Haitian-Revolution

Após a 1° Guerra Ítalo-Etíope, os contatos entre a elite etíope e os negros da diáspora se intesificaram. Exemplo disso são as idas de Benito Sylvain, intelectual haitiano, que teria proposto a formalização de laços diplomáticos entre a Etiópia e seu país natal, e serviu como representante informal dos etíopes na Conferência Pan-Africana de Londres, em 1900; William Henry Ellis, milionário negro dos Estados Unidos, cujos relatos de viagem, que descrevem um Éden africano e cheio de oportunidades, foram publicados na mídia estadunidense; e Joseph Vitalien, médico nascido em Guadalupe, que serviu como doutor da corte de Menelik II. As viagens também se deram no sentido oposto, com a ida de representantes etíopes aos Estados Unidos, como se deu em 1919 com Hakim Warqen Eshete viajando para negociar a construção de uma represa no lago Tana; e em 1933, quando Desta Damtew, Ras (título similar a um duque) do Império Etíope, foi à Nova York em missão oficial e também se encontrou com personalidades do Harlem, bairro historicamente negro da cidade. A morte de Desta, morto nas linhas de defesa contra a segunda invasão italiana, em 1935, inspirou o escritor George Schuyler a escrever as Ethiopian Stories, que popularizaram a imagem da nação africana.

Em 1930 veio a coroação de um novo imperador, que assumiu o nome de Hailé Selassié. O fato é digno de nota pois o imperador viria a assumir papel central nos debates pan-africanos no pós Segunda Guerra Mundial, além de ter tido imenso valor simbólico, visto que determinadas congregações cristãs colocavam contornos messiânicos na ascensão de um novo imperador africano, que assumia um império bastião da resistência. 

O recém coroado Hailé Sallassié, novo imperador da Etiópia
Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/geral-39596814

Marcus Garvey, nome importantíssimo da primeira geração dos movimentos pan-africanistas, declarou sobre o acontecimento em seu jornal, The Blackman:

“Não temos mais dúvidas de que chegou a hora. A Etiópia está verdadeiramente estendendo suas mãos. Este grande reino do oriente esteve escondido por muitos séculos, mas gradualmente ela está ascendendo para tomar um lugar de liderança no mundo […]”

No Caribe, algumas vertentes interpretaram a coroação de modo ainda mais religioso, vendo no novo imperador um enviado de Deus, e passando a colocá-lo como um messias. A este grupo referiam-se pela alcunha pela qual era chamado Hailé Selassié antes de assumir o Império: Ras Tafari.

A Segunda Guerra Ítalo-Etíope, assim como aquela que a precedeu, teve profundas repercussões para a população negra no mundo inteiro. Kwame Nkrumah, que se mudara para o Reino Unido e que viria a ser o primeiro presidente de Gana, relembrou que a invasão era “quase como se toda Londres, de repente, tivesse declarado guerra contra mim, pessoalmente”; Jolmo Kenyatta, que se tornaria presidente do Quênia, comentou que “a Etiópia era o único orgulho restante para africanos e negros em todas as partes do mundo”. O veículo Gold Coast Spectator trouxe em suas páginas: “O homem da Costa do Ouro (antigo nome colonial da atual Gana), até o menino na escola, sabe que tem tudo em comum com os etíopes”; comentando sobre revoltas de populações negras em São Cristóvão, no Caribe, um administrador colonial em Uganda os atribuiu ao “crescimento do sentimento de antagonismo racial” gerado pelo “ataque de uma potência branca à única nação negra restante”; Roi Otterly, escritor afrodescendente estadunidense, declarou, anos depois: “Eu não conheço nenhum outro evento de épocas recentes que tenha agitado tanto as bases dos negros mais do que a Guerra Ítalo-Etíope”.

Iniciativas de apoio e solidariedade à Etiópia se espalharam pelo globo. Nos Estados Unidos, Melaku Byen criou a Federação Mundial da Etiópia (Ethiopia World Federation, EWF). Melaku estudara no país americano anos antes, e fizera parte da comitiva de Hailé Selassié que se retirou para Londres. A EWF tinha como propósito angariar não só apoio à causa etíope, mas também “despertar nas mentes do povo negro do mundo que a palavra negro não deve ser considerada de modo algum uma desonra, mas sim uma honra e dignidade por conta da história passada da raça”, e contava com um sua própria publicação, de tons pan-africanistas, a Voice of Ethiopia (“um Jornal para a Vasta Comunidade Negra Universal e Amigos da Etiópia em Qualquer Lugar”). Se apresentaram como voluntários para serviço na guerra diversos afro-americanos, embora poucos chegaram a lutar de fato. Entre eles, estavam John Charles Robinson (conhecido como o “Condor Pardo”) e Hubert Fauntleroy Julian, pilotos que lutaram nos únicos dois aviões que a Etiópia tinha para combate.

No Reino Unido, se formou em Londres a organização International African Friends of Abyssinia (“Amigos Africanos Internacionais da Abissínia”, nome alternativo da região da Etiópia), que visava “auxiliar por todos os meios à disposição a manutenção da integridade territorial e a independência política da Abissínia”. No Haiti, criada foi a Ligue Haitienne pour la Défense du Peuple Ethiopen; na Guiana Britânica (atual Guiana), a União Trabalhista da Guiana Britânica enviou a seguinte mensagem ao imperador etíope: “Os negros da Guiana Britânica saúdam a sua declaração de que você defenderá seu Império até o último homem contra a agressão estrangeira”. Até mesmo no Brasil militantes como Claudino José da Silva, membro do Partido Comunista, protestaram contra a invasão fascista e em apoio à Etiópia.

Com o fim da presença britânica na Etiópia e o término da Segunda Guerra Mundial, o país se estabilizou sob o governo de Hailé Selassié. Seguiu-se, pelo globo, os movimentos de independência que deram cabo aos vastos impérios coloniais; na África, o primeiro país a tornar-se independente foi Gana, em 1957, a primeira de uma série de independências nas décadas de 50 e 60.

A independência se espalha pelo Continente Mãe
Fonte: https://www.france24.com/en/20200709-1960-a-wave-of-independence-sweeps-across-africa

A Etiópia, observando o nascer dos novos países e a ampliação do pan-arabismo de Nasser, no Egito ao norte, buscou estabelecer para si uma zona de influência e presença no cenário internacional, especialmente no continente africano, mas também entre as comunidades negras pelas Américas. Nesse caminho, foram apresentadas pela Etiópia e pela Libéria queixas contra a África do Sul à Corte Internacional de Justiça, acerca da Namíbia, então sob administração sul-africana. Também, em 1962, foram a Addis Ababa membros do Congresso Nacional Africano para treinarem em técnicas de guerrilha, Nelson Mandela entre eles.

Foram postas em prática iniciativas de soft power, que visavam estabelecer influência simbólica, como o Prêmio Hailé Selassié I, que contava com um valor de 25.000 dólares americanos da época, a intelectuais que se destacassem em estudos sobre a Etiópia e a África. Bolsas de estudos foram oferecidas para estudantes de todo o continente para estudarem na Universidade Hailé Selassié I, em Addis Ababa, onde convidados eram chamados a discursar, como o historiador e primeiro-ministro de Trinidad e Tobago Eric Williams, e o ativista negro norte-americano Malcom X.

Em 1960, a Etiópia foi sede da Segunda Conferência de Estados Independentes, dois anos após o primeiro encontro ocorrido em Gana. Em 1962, durante a terceira iteração da conferência, na Nigéria, já estavam em discussão diferentes projetos pan-africanistas de integração: em um extremo estava o Grupo de Casablanca, que defendia uma unificação política imediata de todo o continente, composto de Gana, Egito e Marrocos; no outro, o Grupo de Monróvia era a favor de laços políticos brandos entre os novos países, como defendido pela Nigéria, Libéria e pelos países francófonos. Tamanhas eram as tensões que o primeiro grupo se ausentou e promoveu boicote ao encontro ocorrendo na Nigéria.

Durante o evento, que contou com a presença etíope, o imperador Selassié declarou que seu país pertencia a apenas um grupo, o “Grupo Africano”. Ainda no mesmo ano, 1962, a Etiópia levou à Assembleia Geral das Nações Unidas a ideia da criação de alguma organização de Estados africanos. Maiores conversas tiveram de esperar até o ano seguinte.

Desde 1959, Addis Ababa era sede da UNECA, a Comissão Econômica das Nações Unidas para a África, e sua posição neutra dentro do embate pan-africano permitiu que, em maio de 1963, um novo encontro pudesse ocorrer. Estiveram presentes os chefes de Estado dos 32 países africanos independentes à época. Em sua proposta, Hailé Selassié defendia uma integração gradual, mas enfatizava a necessidade de alguma união política a nível continental. Com concessões de ambos os grupos antagônicos, foi fundada a Organização de Unidade Africana (OUA).

Foto de líderes presentes na conferência em Addis Ababa. Ao centro, o imperador Hailé Selassié
Fonte: https://www.sahistory.org.za/article/organisation-african-unity-oau

A Organização tinha entre seus principais princípios a promoção da unidade e solidariedade dos Estados africanos; coordenação e intensificação dos esforços para melhores condições de vida aos povos da África; defesa da soberania dos Estados e a erradicação de todo colonialismo ainda presente  no continente africano. Dentre suas primeiras medidas estavam a condenação e levantamento de sanções às posses portuguesas no continente, bem como à África do Sul do apartheid.

Com o considerável sucesso em Addis Ababa, a Etiópia e a figura do imperador conquistaram credibilidade perante os demais países africanos, tendo como marco de suas relações internacionais o papel de mediação entre Marrocos e Argélia, em 1965, acerca do conflito armado iniciado por disputas territoriais.

A OUA, até o fim do século XX, com o avanço das independências, se expandiu a ponto de incluir todos os 53 Estados que então compunham a África. Em 1991, o Tratado de Abuja estabeleceu bases para maior integração econômica de todo o continente, criando uma comunidade econômica africana. Na década de 1990, discussões sobre uma modernização da Organização tomaram lugar, face às mudanças pelas quais passava o mundo. Assim, em 2002 foi criada a União Africana, que preservou diversas instituições de sua predecessora, tendo um perfil inspirado pela União Europeia. Hoje, ela conta com 55 Estados-membros (as novas adições são Sudão do Sul e o Saara Ocidental), englobando a África por completo.

A sede da União Africana, na capital etíope
Fonte: https://www.theguardian.com/world/2018/jan/30/china-african-union-headquarters-bugging-spying

A importância da Etiópia para o imaginário pan-africano se mostra, por exemplo, na inspiração que sua bandeira, baseada na bandeira do Império Etíope, ofereceu para diversas outras no continente africano, sendo suas cores – verde, amarelo e vermelho – como cores pan-africanas. É contado que o imperador Menelik II, que era cristão, hasteou a bandeira com as cores que, para ele, representavam o arco-íris que Deus colocou no céu após o dilúvio representado na Bíblia, ao vencer a Batalha de Adwa. Como ator político, a Etiópia foi essencial para a construção de organizações de cooperação a nível continental – vide o fato de Addis Ababa ser a cidade sede da União Africana – e foi símbolo da luta africana por independência e igualdade.

 

 

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Referências

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PINTO, Otávio Luiz; RODRIGUES, Icles. Império da Etiópia: ascensão e queda de um império. [S. l.: s. n.], 2022. Acesso em: 6 jun. 2024. Disponível em:

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