A Internacionalização do PCC
Por Enrico Spinelli e Stefano Romano
A origem do PCC e sua expansão nacional
O protagonismo latino-americano no tráfico de drogas internacional é tudo, menos uma novidade. Nomes como o Cartel de Cali, o Cartel de Medellín, as FARC e, é claro, o famoso Pablo Escobar são conhecidos de longa data daqueles que acompanham o tema da segurança pública mundial. Tal histórico, porém, não é por acaso: a planta de Coca, de onde se origina o pó de cocaína, se desenvolve bem em regiões montanhosas, de selva e clima úmido. A extraordinária combinação desses fatores nos Andes, dentro de território colombiano, peruano e boliviano, portanto, faz destes países, combinados, a zona mais favorável do globo à produção da droga.
Entretanto, após décadas de protagonismo das facções andinas na exportação dos entorpecentes, as autoridades mundiais passaram a reforçar o controle sobre as rotas mais consolidadas do contrabando, com destaque às fronteiras, portos e aeroportos colombianos, o que gerou, no mundo do crime, uma demanda por novos caminhos para a distribuição dos narcóticos. Diante desse cenário, países como o Equador, a Argentina, o México e, é claro, o Brasil tornaram-se novos palcos do desenvolvimento de facções criminosas, muitas destas voltadas à exploração de novas rotas que garantissem à economia ilícita latino-americana o alcance dos mercados consumidores internacionais. Foi nesse contexto que o Primeiro Comando da Capital (PCC) surgiu e cresceu, tornando-se a principal organização criminosa do Brasil e, mais recentemente, um dos principais agentes da distribuição desses produtos pelo mundo.
Com uma movimentação estimada em 1 bilhão de dólares anuais – cerca de 6 bilhões de reais – o PCC já atua, com seus mais de 40 mil membros, em pelo menos 24 estados brasileiros e 26 países do globo, como apontam investigações realizadas pelo Ministério Público Paulista. Considerado uma das dez maiores organizações criminosas do mundo, o grupo torna inevitável o questionamento: como o PCC, nascido há apenas 32 anos dentro de um presídio no interior de São Paulo, conseguiu, em tão pouco tempo, protagonizar o escoamento de drogas da América Latina ao mundo? Para compreendê-lo, é necessário remontar ao começo dos anos 90.
Do pátio da Casa de custódia de Taubaté ao status de potência mundial no tráfico de drogas
Fundado em 1993 durante um jogo de futebol na Casa de Custódia de Taubaté, o Primeiro Comando da Capital surgiu com o intuito de proteger e fazer valer os direitos dos detentos paulistas. Estes se viam totalmente desamparados e desacreditados do sistema prisional brasileiro. Assim, diante do trauma deixado pelo Massacre do Carandiru de 2 de outubro de 1992 (o qual originou, oficialmente, 111 mortos pela invasão das forças armadas ao pavilhão 9 do presídio homônimo) e de outros tantos problemas enfrentados diariamente nos presídios, como superlotação, más condições sanitárias, entre outros, o PCC surgiu como um “sindicato do crime”, destinado a organizar a vida nos presídios, representar a população carcerária e evitar que novos massacres viessem a ocorrer nas penitenciárias do estado.
Com a negligência do Estado em combater a facção em seus estágios iniciais, os ideais do PCC logo se expandiram para outros presídios, e, conforme os detentos eram ressocializados e rebeliões eram feitas, a filosofia do novo grupo era disseminada pelas ruas das cidades paulistas, incorporando novos membros e se consolidando, como organização, para além das grades. A partir de então, sob o objetivo de obter um reconhecimento no sistema prisional, assim como de garantir meios para o financiamento do grupo, o Comando passou a atuar, de forma coordenada, por diversos ramos, como roubos a bancos, tráfico de armas e drogas, sequestros, e até mesmo a cobrança de mensalidades dos membros.

A partir disso, o mundo do crime em São Paulo se renovou: as atividades ilegais deixaram de ser protagonizadas por gangues ou indivíduos independentes, passando a ser unificadas e organizadas, em grande parte, por uma grande facção centralizada, o PCC. Processo semelhante a este ocorreu no Rio de Janeiro, cujos presídios também foram palco do surgimento de facções criminosas. Neste, porém, a rivalidade envolvendo as variadas facções do tráfico, as milícias e o jogo do bicho impossibilitaram a conquista por algum desses grupos de um monopólio análogo àquele exercido pelo PCC em São Paulo.
O crescimento de poder e influência do grupo paulista ao longo dos anos 90 foi vertiginoso, o que abriu espaço para novas metas: o investimento no tráfico de drogas, a mais rentável de suas atividades, certamente seria o caminho para o aumento de suas receitas e do número de membros.
Até então, porém, o papel do crime paulista nesse mercado limitava-se à distribuição da droga dentro do estado, a partir do fornecimento garantido principalmente pela parceria com facções cariocas, com destaque ao Comando Vermelho (CV). Era este que protagonizava a importação e o contrabando da maconha e da cocaína vindas da fronteira do Mato Grosso do Sul com o Paraguai, garantindo para si grandes volumes financeiros. Portanto, as novas perspectivas de crescimento do PCC só seriam alcançadas mediante uma expansão territorial, primeiramente interna ao Brasil e, posteriormente, internacional, envolvendo o estreitamento de relação com grupos criminosos de outros países da américa latina e de outros continentes e, consequentemente, o crescimento da participação do PCC no mercado ilegal.
Passadas décadas do início dessa expansão, é assustadoramente impressionante o sucesso obtido pelo grupo nessa empreitada: atualmente, existem evidências de que o Primeiro Comando da Capital atue em 24 diferentes estados brasileiros e também no Distrito Federal. Os únicos que não se incluem nessa extensa lista são o Rio Grande do Sul e o Rio de Janeiro, onde outras facções prevalecem.
Além disso, a ambição da conquista do mercado internacional, não só de drogas como também de outros produtos contrabandeados, já é realidade para a facção paulista: O PCC, segundo levantamento do Ministério Público de São Paulo, mantém ao menos 1.545 membros batizados em 23 países pelo mundo. Das operações no Paraguai às parcerias com as máfias italianas, da colaboração com o crime colombiano à atuação direta em territórios estadunidenses, europeus e africanos, a internacionalização do PCC garantiu ao grupo um acesso inédito a lucros extraordinários, além do aumento de seu poder e influência mundial. Em dados concretos, no ano de 2005, quando o grupo paulista ainda engatinhava no tráfico, sua movimentação financeira anual foi de aproximadamente 5 milhões de reais. Em contrapartida, no ano passado, estimativas apontam que a receita do grupo tenha alcançado cerca de 1 bilhão de dólares, dos quais 80% advém do comércio de entorpecentes.
Para compreender melhor este processo, portanto, faz-se necessária a contemplação da conquista das principais rotas da cocaína, maconha e outros produtos ilegais que passam pelas mãos do PCC. Este processo, acima de tudo, remonta à fronteira com o Paraguai.
Paraguai, o centro de distribuição de drogas da América Latina
Para explicar a atuação das organizações criminosas do Brasil no Paraguai, com foco especial no PCC e no CV, é de extrema importância a compreensão do papel imprescindível desse território na rota do tráfico internacional de drogas. Com uma geografia perfeita para o escoamento de produtos contrabandeados, o Paraguai conecta grandes produtores de cocaína, em especial Peru e Bolívia, a importantes mercados consumidores: o Brasil, segundo maior consumidor de cocaína do mundo segundo o Relatório Mundial sobre Drogas da Organização das Nações Unidas (ONU) de 2024, e a Argentina. Vale mencionar que, além de abastecerem seus mercados internos, ambos os países possuem acesso ao mar, funcionando como rotas dos entorpecentes rumo ao mundo, especialmente à Europa.
Cortado pelo Rio Paraguai, o país homônimo apresenta uma rede hidroviária única, denominada ‘Hidrovia Paraná-Paraguai’. Este é um dos maiores sistemas navegáveis do mundo, com uma extensão de mais de 3000 km e ramificações em quase todos os países do cone sul, com exceção do Chile. De maneira rápida e barata, tal hidrovia funciona literalmente,como um centro de distribuição de produtos contrabandeados, o que muito se deve à fraca fiscalização nos portos paraguaios, muito menor quando comparada àquela dos portos brasileiros e argentinos. Seu protagonismo no comércio ilegal deve-se também à rapidez e facilidade do trafego na hidrovia – poucas horas separam Saltos del Guaíra, cidade paraguaia portuária, e São Paulo, capital econômica do Brasil e berço do PCC.
Além do tráfego por terra, a dificuldade de controle aéreo do Paraguai contribui para voos irregulares em pequenos aviões fretados por traficantes, que rapidamente atravessam a fronteira brasileira e arremessam seus produtos em solo nacional, dificultando a intervenção e fiscalização da polícia de ambos os países. Apenas em fevereiro, 27, neste ano de 2025, que o presidente paraguaio, Santiago Peña, anunciou a compra do primeiro radar, de um total de 10, destinados a vigiar o espaço aéreo nacional, com foco em barrar a atuação dos narcotraficantes na fronteira.
Combinados, tais fatores fazem da fronteira brasileira com o país vizinho um dos territórios mais estratégicos e promissores do tráfico internacional de drogas. A atuação de facções brasileiras na região, porém, não nasceu com o PCC, mas sim, com o Comando Vermelho.
Ao contrário do PCC, que foi criado no começo dos anos 1990, o CV nasceu em 1979, 14 anos antes. Pioneiro no crime organizado contemporâneo brasileiro, o grupo carioca foi a primeira grande facção nacional a expandir suas atividades no Paraguai. Nesse sentido, ao longo dos anos 1990, partindo de uma parceria com o Clã Morel (a facção paraguaia que liderava o tráfico local), o Comando já influenciava o funcionamento da fronteira, com destaque para um dos seus mais famosos líderes: Luiz Fernando da Costa, mais conhecido como Fernandinho Beira-mar.
Foragido do Brasil desde 1997, Beira-mar foi o grande responsável pela importação de cocaína e maconha durante o fim da década de 90. Em 2000, porém, mudou-se para a Colômbia, onde veio a ser preso. Seu encarceramento abriu espaço para o fortalecimento de outros traficantes na divisa, com destaque a Jorge Rafaat Toumani, mais conhecido como “O rei da fronteira”, o qual passou a ditar as regras do comércio ilícito entre o CV e os estrangeiros. No ano de 2009, porém, a região é tomada por variados conflitos armados entre o Comando Vermelho e o Clã Morel, os quais resultam não só na morte de seu líder, João Morel, como também num expressivo crescimento no poder da facção carioca sobre a região.
Ao longo desse período, a participação do PCC no tráfico era ainda de menor impacto: uma parceria com o CV garantia o fornecimento indireto dos entorpecentes vindos do exterior, e o papel dos paulistas se resumia mais à distribuição destes dentro das fronteiras do estado. Em 2010, porém, essa situação começa a mudar, pois o PCC passa a buscar pelo contato direto, sem intermediários, com as fontes da droga no país vizinho. O ponto de virada, porém, data de 2016, quando há uma brusca mudança em sua abordagem: o envio de cada vez mais membros do grupo paulista origina novos conflitos armados, os quais resultam, neste ano, no assassinato de Rafaat, arquitetado em conjunto pelas duas facções brasileiras. A partir de então, porém, a histórica cooperação entre paulistas e cariocas chega ao fim, dando origem a uma intensa disputa pela fronteira entre PCC e CV.

Atualmente, o controle dessa importante rota do narcotráfico latino-americano encontra-se majoritariamente sob as mãos do Primeiro Comando da Capital, o que obrigou o Comando Vermelho a buscar alternativas ao acesso ao comércio internacional como, por exemplo, a Rota do Solimões, localizada na região da floresta amazônica. A conquista da fronteira paraguaia, portanto, é responsável pelo início do vertiginoso crescimento do poder, da influência e das receitas do PCC. A partir desse contato, a maconha e a cocaína produzidas nos andes, tal qual outros produtos contrabandeados, como os armamentos, são trazidas ao Brasil. Em território nacional, veículos e aviões de pequeno porte garantem o abastecimento do mercado interno, assim como o transporte em direção aos portos e aeroportos, considerados as principais vias para a exportação transatlântica.
A floresta amazônica: um importante eixo do comércio ilegal latino-americano
Uma vez dominada a fronteira com o Paraguai, e ciente do seu poder perante outras organizações criminosas, o PCC começou seu avanço para regiões mais próximas dos países produtores de cocaína, em especial a Colômbia, com o intuito de diversificar as rotas de entrada de produtos contrabandeados no Brasil e dificultar ainda mais o trabalho de fiscalização das autoridades. A partir disso, inicia-se a conquista da Rota Amazônica.
A Floresta Amazônica é a maior floresta tropical do mundo, com uma área de cerca de 6 milhões de quilômetros quadrados e com a maior bacia hidrográfica do planeta. Tais características assemelham-se àquelas observadas no Paraguai, uma vez que a área é de difícil controle estatal, o que resulta em uma deficitária fiscalização. Além disso, o transporte é também majoritariamente feito por barcos, deslocamento esse rápido e barato, muito utilizado pelos contrabandistas no tráfico de drogas e de outros produtos ilegais. Diante disso, tal região rapidamente tornou-se alvo dos criminosos brasileiros e colombianos, em específico do Comando Vermelho (CV) e dos guerrilheiros das FARC (as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), o que, ainda nos anos 2000, atrasou a entrada do PCC na grande engrenagem do tráfico de drogas amazônico.
Um dos primeiros relatos da relação entre criminosos brasileiros e colombianos data de uma caçada do Exército colombiano em abril de 2001, que resultou na prisão de Fernandinho Beira-Mar, um dos supracitados líderes do CV. Foragido no país desde 2000, Beira-Mar se associou ao comandante da frente 16 das FARC, Tomás Medina Caracas, conhecido como Negro Acacio, apontado como administrador do dinheiro da guerrilha. Ambos mantinham trocas de produtos contrabandeados, com o líder brasileiro fornecendo armas paraguaias em troca das drogas à base de coca produzidas nas selvas colombianas, as quais partiam do Rio Vaupés (Colômbia) em direção a Manaus, e, posteriormente, eram enviadas ao sudeste para alimentar a demanda doméstica do tráfico.
Como citado anteriormente, a prisão de Fernandinho Beira-Mar abriu espaço para disputas em localidades uma vez dominadas pelo Comando Vermelho, em especial na fronteira do Paraguai, com Jorge Rafaat, o “Rei da fronteira”, herdando o vácuo de poder deixado por Beira-Mar e, em 2016, perdendo-o para o PCC, após sua morte. Entretanto, o encarceramento do líder do CV fragilizou também o controle das rotas do norte do país, embora não de maneira imediata, uma vez que, em 2001, o PCC tinha apenas 8 anos de existência e ainda estava focado em se firmar como organização dentro do estado de São Paulo. Assim, o CV ainda se mostrou como facção dominante das trocas comerciais com as FARC durante algum tempo.
Porém, essa história começa a mudar em meados de 2017, quando o PCC, fortificado economicamente e militarmente por conta do controle da fronteira com o Paraguai, tem a oportunidade de também se firmar como protagonista na fronteira com a Colômbia. Neste ano, as FARC tinham acabado de assinar um acordo de paz com o governo, abrindo a possibilidade da organização paulista dominar a produção e controle do tráfico na região.
Entretanto, em 2019, após 3 anos de paz, Iván Márquez, um dos principais líderes das FARC, anunciou uma retomada da luta armada em resposta ao descumprimento dos termos acordados por parte do Estado, resultando na retomada de grupos dissidentes de ex-combatentes que optaram por continuar na selva praticando o tráfico de armas e drogas.
Com a retomada ao conflito armado e o nascimento de novos grupos criminosos, a demanda por armas cresceu novamente na Colômbia e, se nos anos 2000 era função do Comando Vermelho fornecê-las a partir do contrabando no Paraguai, 20 anos depois a balança de poder se encontra muito mais equilibrada: o vertiginoso crescimento do PCC permitiu seu amplo ingresso nesse comércio outrora monopolizado pela facção carioca e, consequentemente, o grupo paulista agora se lança nos conflitos armados no norte contra o CV e pelo controle das rotas de escoamento do comércio ilegal na Amazônia.
Segundo investigações realizadas em sigilo pela Drug Enforcement Administration (DEA), o PCC, junto às FARC, troca hoje armas e drogas pela fronteira por meio de um intermediário, Nelson Jaramillo Quiceño, conhecido como Calidad, responsável por garantir que os guerrilheiros colombianos consigam transportar as mercadorias para São Gabriel da Cachoeira e Manaus, cidades controladas pelo PCC, que funcionam como pontos de partida da droga para países caribenhos, europeus e para o próprio mercado interno.

Para além das trocas firmadas com as FARC, o domínio de capitais no norte do país permite também uma posição estratégica do PCC para a ampliação de sua influência em outros países amazônicos, como o Peru e Venezuela. O Comando Vermelho se mostra dominante em um número maior de municípios do Norte, com 50% das cidades sob poder do crime organizado na Amazônia Legal (cerca de 130), o que lhe garante uma rede ampla e descentralizada de contrabando. O PCC, porém, cresce na região mediante o domínio de grandes capitais como Manaus, no Amazonas, e Bela Vista, em Roraima. A última, por exemplo, é utilizada pela facção paulista como entreposto para o recrutamento de novos membros, muitos deles venezuelanos, que buscam ascender economicamente após fugir da crise econômica que assola a Venezuela. Estes fazem-se úteis também para contrabandear produtos entre ambos os países, especialmente armas, as quais são bem mais baratas no território venezuelano, como relata a jornalista Ronna Rísquez – responsável por investigar o grupo Trem de Aragua, gangue mais poderosa da Venezuela que possui alianças com o PCC: “De qualquer forma, era muito fácil e barato conseguir armas na Venezuela e vendê-las no Brasil era um negócio interessante para os dois. Um fuzil AR-15 no Brasil custava US$20 mil, enquanto na Venezuela custava US$5 mil.”
A distribuição da droga pelos principais mercados consumidores
Assim como supracitado, a produção mundial de maconha e cocaína concentra-se majoritariamente na Colômbia, no Peru e na Bolívia, devido às favoráveis condições naturais locais para o desenvolvimento de suas plantas originárias. Historicamente, porém, os Estados Unidos da América sempre se destacaram como principal centro mundial de consumo dessas substâncias. Entretanto, ao longo das últimas décadas, os narcotraficantes internacionais passaram a dirigir suas atenções cada vez mais para outras regiões para além da América do Norte como, principalmente, a Europa e o Brasil, onde a demanda por entorpecentes vem crescendo rapidamente.
Em dados concretos, de acordo com o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (EUDA), de 2011 a 2024, houve um aumento de 80% nos traços encontrados de uso da cocaína nas águas residuais dos grandes centros urbanos europeus. No Brasil, por outro lado, dados do Ministério da Saúde indicam que, entre 2000 e 2022, houve um crescimento de 600% na ocorrência de mortes relacionadas ao uso da cocaína. Esse crescimento no consumo de narcóticos em diferentes regiões do globo deve-se, em partes, ao papel das facções brasileiras na distribuição desses produtos pelo mundo, com destaque, é claro, à mais poderosa organização criminosa do país: o Primeiro Comando da Capital.
Uma vez que os narcóticos atravessam a fronteira, principalmente na Floresta Amazônica e no Paraguai, o PCC comanda grande parte de sua distribuição pelo território nacional. A disputa com outras facções, principalmente o Comando Vermelho, por rodovias e rios navegáveis é essencial ao acesso do grupo às mais variadas regiões do país e, consequentemente, ao funcionamento desse comércio. Diante disso, é possível identificar o grupo paulista como o principal responsável pelo vertiginoso crescimento do consumo de narcóticos observado no nosso país, o que o garante expressivos lucros.
Porém, para além do consumo doméstico, o PCC dirige cada vez mais seus investimentos à exportação transatlântica. Nesse sentido, o principal centro de consumo de drogas do mundo, os EUA, já tem importantes laços com o Comando paulista, mas a maior parte dos narcóticos que chegam às ruas estadunidenses advém, na verdade, de países como o Equador e o México. Estes localizam-se geograficamente entre os países produtores e a América do Norte, o que favorece o protagonismo de suas respectivas facções nesse eixo de distribuição da droga. Por outro lado, o Brasil abrange quase a totalidade da costa Leste da América do Sul, o que muitas vezes torna necessária a passagem da cocaína e da maconha pelo território nacional para o alcance dos grandes mercados localizados a Leste, com destaque à Europa. É, portanto, nesse eixo de distribuição internacional da droga que o PCC torna-se protagonista.
Das fronteiras com o Paraguai e a Colômbia, o grupo paulista conduz os narcóticos principalmente ao Porto de Santos, o maior da América Latina, responsável pelo fluxo de cerca de 10.000 containers todos os dias. Estimativas do Ministério Público de São Paulo apontam que, mensalmente, o PCC envia pelo menos 4 toneladas de cocaína pura à Europa pelo porto de Santos. Tal envio envolve operações sofisticadas: muitas vezes, a droga é misturada com as cargas dos containers antes mesmo de eles chegarem ao Porto; outras vezes, é escondida em automóveis transportados pelos grandes “navios-garagem”; por fim, também é comum que o grupo esconda os narcóticos dentro do casco dos navios.
Dessa maneira, a partir dos mais diversos métodos, as embarcações que passam pelo Porto de Santos tornam-se responsáveis por cerca de 60% da cocaína traficada do Brasil à Europa. Estima-se que apenas 10% desse montante seja apreendido pelas autoridades, o que demonstra a elevada eficácia das operações do grupo.

Portos no nordeste e no sul também participam dessa dinâmica, mas de maneira secundária. Além disso, os aeroportos internacionais são também uma rota frequentemente utilizada pelos narcotraficantes, com destaque para o Aeroporto Internacional de Guarulhos, na grande São Paulo.
Existem registros de que, após a passagem pelo Porto de Santos, a distribuição dos narcóticos inclua a todos os cinco continentes. É para a Europa, porém, que a maior parte das cargas se dirige, em busca de um mercado consumidor crescente e de elevado poder aquisitivo. Historicamente, a principal porta de entrada dos narcóticos no velho continente foi a Espanha. Atualmente, porém, ganham destaque os Portos de Rotterdam (Holanda), Antwerp (Bélgica) e Hamburgo (Alemanha). A partir desses centros, a droga é distribuída por todo o continente. No caso da cocaína, por exemplo, as regiões onde o consumo mais aumenta e, consequentemente, para onde o tráfico é mais atraído são a Holanda, a Espanha, a Irlanda, a Noruega e a Dinamarca.
A organização de todo esse transporte é feita mediante, muitas vezes, a formação de parcerias com gangues e máfias européias. O desenvolvimento do narcotráfico latino-americano, portanto, muitas vezes beneficia-se do crescimento do crime organizado na Europa.
Nesse viés, destaca-se a aliança firmada entre o PCC e a ‘Ndrangheta, a maior das máfias italianas. De uma origem centenária que remonta ao século XVIII, a ‘Ndrangheta atua em mais de 40 diferentes países e, com uma movimentação anual de cerca de 50 bilhões de euros, é considerada a mais poderosa organização criminosa do mundo. Nessa parceria, o PCC é responsável pelo fornecimento da cocaína ao grupo italiano, o qual, tendo domínio sobre importantes rotas europeias, ocupa-se com a distribuição do pó pelo continente. Um reflexo dessa dinâmica deu-se no primeiro semestre de 2020, no Paraná: 770 kg de cocaína pertencentes à parceria criminal ítalo-brasileira foram desviados do Porto de Paranaguá, resultando em um prejuízo de cerca de 4 milhões de dólares às duas facções. Meses depois, a vingança ocorreu: foi feita a execução de 4 suspeitos de envolvimento no roubo.
O Significado da Internacionalização do PCC
A partir da análise da trajetória do Primeiro Comando da Capital realizada ao longo do artigo, a pergunta “Como o PCC, nascido há apenas 32 anos dentro de um presídio no interior de São Paulo, conseguiu, em tão pouco tempo, protagonizar o escoamento de drogas da América Latina ao mundo?” se torna mais palpável do que nunca.
Nascido em um presídio no interior de São Paulo, em 1993, o grupo se mostrou uma esperança aos presos que viviam os maus tratos do sistema carcerário brasileiro. Amparado pela negligência governamental em combatê-lo no seu início, o PCC rapidamente se espalhou pelas ruas de São Paulo, propagando sua filosofia aos grupos vulneráveis. Financiado por mensalidades pagas por seus membros, pelos roubos e pelo tráfico de armas e drogas, o grupo passou a acumular dinheiro e poder, expandindo suas atividades para outras cidades além da capital paulista e, consequentemente, se firmando como organização hegemônica no estado.
No começo dos anos 2000, seu maior concorrente recebeu um duro golpe: o Comando Vermelho, até então a maior facção do Brasil, viu um de seus líderes, Fernandinho Beira-Mar, ser preso em uma caçada do Exército colombiano. Abriu-se assim espaço para a nova organização paulista expandir sua influência além do estado e buscar um maior espaço no comércio de armas e drogas entre o Brasil e seus países fronteiriços, em especial Paraguai e Colômbia.
Após longos anos inseridos nas rotas de contrabando paraguaias, mas com espaço limitado pela figura de um intermediário, Jorge Rafaat – que ocupou o lugar de Beira-Mar no controle da fronteira – o PCC entende que, para continuar a sua expansão, era necessário manter relação direta com os produtores de drogas e contrabandistas de armas, obtendo tais produtos à menor preço, sem a interferência externa de outras organizações regulando o comércio. Assim, uma guerra pelo controle da fronteira Paraguai-Brasil se inicia e, ao fim, vitória do PCC e morte de Jorge Rafaat, em 2016.
A partir de tal demonstração de força, o PCC passa a ser extremamente influente no comércio ilegal, controlando importantes rotas de contrabando que abasteciam o mercado doméstico e exportando-as ao mercado externo.
Em 2017, outro acontecimento colabora para a internacionalização do PCC: as FARC assinam um acordo de paz, e a organização paulista enxerga a oportunidade de controlar a produção de drogas na selva colombiana e escoá-las pelas rotas do Norte, com destino aos portos e aeroportos em contato com a Europa e ao próprio mercado no sudeste do país.
Em conflito com o CV no Norte e com outras facções, o PCC consegue o domínio nas capitais, como Manaus, no estado do Amazonas, e Bela Vista, em Roraima, e passa a comercializar com ex-guerrilheiros das FARC e com gangues importantes de outros países amazônicos, como Trem de Aragua, maior gangue venezuelana, e o Los Federales, gangue peruana, cujo líder, El Monstruo, se refugia no Brasil sob proteção do PCC. Tais cidades passam a ser importantes centros logísticos que funcionam como locais de recrutamento de novos membros, especialmente presidiários e venezuelanos, que fogem da crise humanitária na Venezuela.
Portanto, com tal domínio territorial e ampla rede de alianças estabelecidas com organizações responsáveis pelo contrabando de armas e produção de drogas, o PCC rapidamente domina as rotas do Norte do país, e, assim como, no Centro-Sul, passa a controlar a entrada desses produtos e seu escoamento para o exterior.
Com o grande volume de armas e drogas comercializados por diversas rotas, ampla rede de membros, que já passam dos 40 mil, e grande poderio econômico, a organização paulista direciona seus esforços nos aeroportos e portos, em especial o Aeroporto de Guarulhos e o Porto de Santos, os mais movimentados do país, apostando na sua capacidade de burlar a fiscalização das autoridades. Por meio de mergulhadores profissionais que instalam drogas nos cascos dos navios e adulteração de containers, o PCC envia toneladas de drogas à Europa, principalmente, que sofre cada vez mais com a aliança transatlântica PCC-Ndrangheta, maior máfia do mundo, que recebe as drogas latinas por diversos pontos do continente, desde os portos ibéricos, em Portugal e Espanha, até ao norte, como os portos holandeses e belgas e as comercializa por toda a Europa.
Portanto, fica claro que a vertiginosa expansão do PCC se deve a diversos fatores, desde a negligência estatal em combatê-lo em seu início, a fragilidade do governo paraguaio em impedir o contrabando em suas localidades, até acontecimentos fora de seu controle, como o enfraquecimento do Comando Vermelho no início dos anos 2000 e o acordo de paz das FARC com o governo colombiano, ambos determinantes na janela de oportunidades que a facção paulista teve para crescer para além do Brasil. Assim, a internacionalização do PCC não é apenas sobre comercializar grandes toneladas de drogas para a Europa, responsáveis por influenciar problemas na segurança e saúde pública desses países, mas também sobre o aumento da criminalidade nos países da América do Sul, contribuindo para o aumento da circulação de armas entre criminosos, assassinatos, assaltos, sequestros, corrupção, entre outros, além de grandes quantidades de drogas disponíveis para a população.
Dessa maneira, o PCC, ao longo das últimas décadas, consolidou-se mundialmente como um importante ator nas relações internacionais no que diz respeito aos mercados ilícitos, com destaque ao narcotráfico. Seu crescimento sem precedentes possibilitou a multiplicação de suas receitas e de sua influência e, pouco mais de 30 anos depois de sua fundação, o grupo atua como uma verdadeira multinacional do crime.
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