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A Nova Argentina e o Futuro da Integração

A Nova Argentina e o Futuro da Integração

Janina Onuki

Artigo publicado na revista PONTES entre Comércio e Desenvolvimento Sustentável. Volume IV, no. 1, ICTSD/Direito-FGV, Fevereiro de 2008, pp. 22-24.

O objetivo deste artigo é discutir as perspectivas da política externa do atual governo argentino de Cristina Kirchner. Tomando como ponto central, a integração regional, o artigo faz uma reflexão sobre os resultados alcançados pelo governo anterior, discute os pontos de continuidade e mudança e as propostas do novo governo para a região.

A eleição de Cristina Fernández de Kirchner à presidência da República, na Argentina, com praticamente 45% dos votos, não surpreendeu. Não apenas porque confirmou os resultados das pesquisas eleitorais, mas, sobretudo, porque a então candidata herdava bons resultados do governo anterior, administrado por seu marido, Néstor Kirchner, e soube aproveitá-los eleitoralmente.
Por outro lado, a estratégia pré-eleitoral de Kirchner em não se recandidatar, garantindo espaço para Cristina, não refletiu apenas um jogo eleitoral que procurava superar os pontos de rejeição do seu governo (ameaça da inflação, denúncias de corrupção) que vinham crescendo nos últimos meses de campanha (embora não ameaçassem a sua eleição). Mas também foi uma forma de consolidar a liderança dos Kirchner no poder, e à frente do Partido Justicialista (PJ), fragmentado desde as últimas eleições de 2001, quando o PJ concorreu com três candidatos (Carlos Menem, Néstor Kirchner e Adolfo Rodriguez Saá).
A campanha eleitoral de Cristina Kirchner foi considerada pelos especialistas, como minimalista, já que a candidata deu poucas entrevistas, evitou debates públicos, e confirmou um programa de governo apontando para mais continuidade do que mudanças.
Este artigo procura analisar as implicações dessa eleição, particularmente no que se refere à integração regional, e ao Mercosul. O que se pode esperar deste novo governo? Esta pergunta é importante, já que a Argentina é considerada parceiro estratégico do Brasil desde finais da década de 80, e vem adotando uma política externa bastante pragmática (e pouco diplomática) nos últimos anos. Nas relações regionais, a Argentina parece atuar num equilíbrio delicado ao apoiar o ingresso da Venezuela no Mercosul.
O artigo está dividido em duas partes: a primeira analisa a repercussão e o significado da eleição de Cristina Fernández de Kirchner à presidência, e a segunda parte procura avaliar o programa de governo e o posicionamento, em temas de política externa, particularmente no tema da integração regional.

A CONSOLIDAÇÃO DE UMA NOVA FORÇA POLÍTICA

O sistema político argentino, historicamente calcado em duas forças políticas que tornaram o sistema praticamente bipartidário (com o peronista – Partido Justicialista, e a União Cívica Radical – UCR), fragmentou-se nos últimos anos, de forma radical. Surgiram diversos micro-partidos na Argentina, e o sistema partidário não soube se renovar de forma organizada no período pós-autoritário. Ainda o que temos visto na Argentina é a ascensão (e queda) de governos baseados, predominantemente, em personalidades política fortes.
Nesse contexto, podemos observar que a liderança dos Kirchner vem se consolidando ao longo dos últimos anos, não apenas com a eleição à presidência, mas a própria eleição ao Senado de Cristina em 2005 quando obteve um percentual de votos bastante superior à sua opositora, Hilda “Chiche” González de Duhalde. Nestas mesmas eleições, o presidente Kirchner obteve maioria no Congresso. Tudo isso facilitou a administração do governo no enfrentamento dos problemas econômicos e políticos, e é por isso que se atribui ao governo Kirchner a responsabilidade pela superação da pior crise pela qual o País passou.
Nestor Kirchner assumiu a presidência num momento em que o País estava praticamente ingovernável e conseguiu, minimamente, colocar a Argentina nos trilhos, garantindo a estabilidade e retomando o crescimento econômico. É claro que tudo isso a um custo alto, mas ao que a Argentina já está bastante acostumada: um desequilíbrio de poder, a favor do Executivo. Sabemos que a estrutura do sistema político argentino favorece a centralização do poder e a manutenção de políticas personalistas, e a marca do “hiperpresidencialismo” tem dominado a Argentina há décadas. Com Kirchner esta prática só se ampliou, e a justificativa para a maior centralização de poder era a própria crise econômica, o maior fantasma que ameaçava a população.
Num País em que as personalidades políticas se sobrepõem aos partidos, pelo menos no que diz respeito à sua força eleitoral, a estratégia foi de manter a continuidade do “kirchnerismo” no poder. A candidatura de Cristina Kirchner foi gestada ao longo desses últimos anos, beneficiada pela boa aceitação popular da Senadora, e pela capacidade dos Kirchner de recentralizar as dissidências peronistas.
Se, por um lado, a crise vivida pelos argentinos a partir de 2001 trouxe um conjunto de novos problemas, também se reforçou a idéia de que era necessário eliminar de vez qualquer resquício dos dez anos de “menemismo” a quem se atribuíam os resultados negativos da economia e as vulnerabilidades que as políticas liberalizantes de Menem tinham deixado de herança para a população.
Mas o grande desafio da Argentina, do ponto de vista da institucionalidade política, ainda continua sendo superar o hiperpresidencialismo personalista, e consolidar suas instituições políticas e partidárias.
No início da década de 90, Menem soube beneficiar-se da “legitimidade de resultados”. Para uma população vinda de um cenário catastrófico de hiperinflação, a prioridade deveria ser a estabilidade da economia. E Menem ofereceu essa estabilidade como um resultado imediato do seu primeiro ano de governo. E conquistou legitimidade para fazer uma série de reformas, reforçando o traço do hiperpresidencialismo. A crise econômica de 2001 faz vir à tona um problema de natureza política e estrutural.
Cristina Kirchner não é apenas a primeira mulher a ser eleita presidente no seu país. Tem em suas mãos a responsabilidade de recuperar a tradição política peronista (pelo menos no campo partidário), assim como de superar o fantasma da inflação e enfrentar os desafios da modernização e do desenvolvimento, temas que o governo anterior do seu marido não conseguiu avançar.

O PRAGMATISMO RESPONSÁVEL DA ARGENTINA

Se revisarmos o discurso pré-eleitoral do presidente Néstor Kirchner, em 2000, no que se refere à política externa, vamos perceber a defesa de uma parceria quase que exclusiva com o Brasil, e a garantia de que seu governo apostaria no aprofundamento da integração do Mercosul como prioridade. Mas, à época, o discurso derivava mais da falta de um projeto de política externa e da necessidade de fazer oposição ao seu maior adversário, Carlos Menem, que defendia a integração do País com os Estados Unidos, tal como foi o alinhamento mantido durante os dez anos do seu governo na década de 90.
Entretanto, o que pudemos observar no governo Kirchner, foi um descompromisso com o Mercosul, justificado pela necessidade imediata de resolver a crise que assolava o país. Por isso foi dada prioridade às negociações com o FMI, e às relações com todos aqueles que pudessem oferecer ajuda, principalmente a vizinha Venezuela.
No que diz respeito ao aprofundamento do Mercosul, não houve propriamente avanços (não apenas por responsabilidade da Argentina), e pouco se discutiram medidas efetivas para a concretização da “Agenda 2006”. O ponto alto da política externa argentina para o Mercosul foi a defesa do ingresso da Venezuela. Não que isso também não tenha sido apoiado pelo governo brasileiro, mas por diversas vezes, a postura argentina mais parecia se aliar a Chavez, num combinação pragmática ao seu maior credor, e na tentativa de conter a expansão da liderança brasileira no Continente, procurando evitar um avanço do efeito “dependência-Brasil”.
Neste período, a postura da Argentina coincidiu mais com um free rider do que propriamente um parceiro ativo no processo de integração. Isso já era de se esperar, já que Kirchner, mergulhado em problemas domésticos, pôde minimizar suas propostas na área de política externa, defendendo o Mercosul que servia para se diferenciar de Menem (que voltava a insistir na relação com os norte-americanos), e o beneficiava, ao garantir o apoio político do presidente Lula durante sua campanha, cuja imagem positiva junto aos argentinos era surpreendente.
Aos poucos, expectativas positivas viram-se transformadas em resistências na construção de uma nova agenda de negociações para o Mercosul. E alguns sinais mais recentes apontam mais dificuldades, de coordenação de posições e de desconfiança entre os sócios.
Cristina Kirchner foi eleita com o discurso da ampliação do Mercosul (defendendo o ingresso da Venezuela), com base no mesmo discurso do seu marido: dar à América Latina um outro lugar no mundo. Mas a relação com a Venezuela (e também com o Brasil) tornaram-se pontos fundamentais para a Argentina que precisa diversificar sua pauta de exportações, e precisa superar a ameaça de uma crise energética mais grave.
Contrariamente ao seu principal opositor, a União Cívica Radical (UCR), O Partido Justicialista de Cristina Kirchner defende a integração latino-americana e o Mercosul é entendido como um instrumento para a ampliar este processo – daí a justificativa para o ingresso da Venezuela. Partindo dessa proposta, a Argentina pretende expandir o Mercosul para uma integração sul-americana. Entretanto, Néstor Kirchner se opôs à proposta brasileira da CASA (Comunidade Sul-Americana de Nações), contestando a liderança do Brasil neste projeto.
A UCR, por sua vez, entende que o Mercosul deve ser recuperado, e retomar o modelo da década de 80, proposto pelos, então presidentes, José Sarney e Raúl Alfonsín. O programa partidário da “Frente para la Victória” que elegeu Cristina Kirchner é bastante superficial no que se refere à sua política externa, mas defende o Mercosul como projeto regional, mas “sem prejuízo de outras relações multilaterais”. Há várias formas de interpretar isso, mas indica, em continuidade ao governo anterior, uma forma de ter o Mercosul como ponto central, mas não prioridade.

O FUTURO DO MERCOSUL

Ainda não há clareza de qual o rumo tomará o governo de Cristina Fernández de Kirchner. O discurso, no que se refere ao Mercosul, tem apontado para o aprofundamento da integração. A expectativa neste caso, diz respeito ao perfil, mais diplomático, da nova presidente. Isso pode facilitar o diálogo, mas não é suficiente para garantir empenho no avanço dos problemas do Mercosul.
A Argentina parece manter uma postura ainda de pouco investimento. Antes tudo era justificado pela necessidade de superar a crise. Mas passadas as dificuldades mais graves da crise, ainda não temos clareza sobre os projetos da nova presidente da Argentina no que se refere à agenda de política externa, até porque Cristina pouco apresentou seus planos durante a campanha eleitoral, restringindo-se a falar em dar continuidade às benfeitorias do marido.
Mas os maiores entraves da integração sul-americana encontram-se na ausência de interesses políticos convergentes ou identidade de grupo. Ou bem não há consenso entre os países da região sobre a necessidade de levar adiante a integração, ou bem o significado que cada um dos países confere a este processo é distinto. O ponto central, neste campo, é o fato de haver divergências de fundo quanto ao nível de prioridade da integração regional nos quadros da política externa dos países da região, em especial de seus países-pivô (Argentina, Brasil, Venezuela); além de serem baixos os níveis de interdependência intra-regional, em particular no campo econômico.
Neste contexto, a Argentina tem um papel central, como fiel da balança entre a liderança de Brasil e Venezuela, e não é interessante pender integralmente para nenhum dos lados, até porque nesses dois parceiros encontra-se parte das soluções para os problemas da Argentina: energia e diversificação da pauta de exportações. E até agora o Mercosul tem-se revelado benéfico no que diz respeito à inserção internacional dos países, pelo menos do ponto de vista comercial, embora ainda bastante limitado se comparado a outras iniciativas do mesmo porte.
Tudo muito pragmático. Talvez a Argentina tenha se acostumado a reagir a problemas de curto prazo, mas a integração exige um comprometimento maior dos governos para ampliar a legitimidade do bloco e um plano mais claro da Argentina que, inclusive, acaba de assumir a presidência pró-tempore do Mercosul. Mas, por enquanto, aparentemente sem uma proposta concreta.
No Brasil, o tema do ingresso da Venezuela parece ter se tornado ponto central da discussão sobre o Mercosul. Mas, como afirma Lia Valls, nesta mesma publicação, a “entrada de um novo sócio não significa a consolidação do processo”. Tampouco significa a dissolução do bloco, como têm apostado parte das elites brasileiras. Mas certamente coloca um ponto adicional na já complicada trajetória da integração.
Os desafios por que passam o Mercosul são mais profundos. O bloco espera, ainda, a elaboração de um projeto mais amplo de desenvolvimento dos países. E isso requer compromisso de todos os membros. E talvez este seja o problema central: além de não haver uma visão comum sobre o objetivo que se quer alcançar, também não foi possível chegar a um consenso no que se refere a um projeto comum de desenvolvimento dos países membros do bloco.

fonte: http://www.ictsd.org/monthly/pontes.htm
28/3/2008

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