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A reforma agrária no centro da crise entre Estados Unidos e África do Sul

A reforma agrária no centro da crise entre Estados Unidos e África do Sul

Por Kauan Siqueira e Lorena Parra

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Donald Trump, presidente estadunidense, mostra reportagens falsas sobre “genocídio branco” na África do Sul enquanto se encontra com o presidente do país, Cyril Ramaphosa – Fonte: REUTERS/Kevin Lamarque.

No fim de maio, em uma visita oficial do presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, à Casa Branca, o presidente estadunidense Donald Trump acusou o governo de Ramaphosa de confiscar terras de fazendeiros brancos e de promover uma limpeza étnica contra brancos na África do Sul, o que resultou em uma constrangedora discussão entre os dois chefes de Estado. Desde o início do segundo mandato de Donald Trump, as relações diplomáticas entre os Estados Unidos e a África do Sul têm se tensionado, e o principal motivo dessa desarmonia crescente é a nova Lei de Expropriação de Terras da África do Sul, sancionada por Cyril Ramaphosa em janeiro de 2025 e que permite, em casos mais raros, o confisco de terras sem o pagamento de qualquer indenização aos proprietários. 

Concentração fundiária na África do Sul: origens

Para compreender o complexo cenário da questão fundiária na África do Sul, precisa-se voltar ao fim do período colonial e à rivalidade entre os descendentes dos primeiros colonos holandeses e britânicos. A Segunda Guerra Anglo-Boer, que durou de 1899 a 1902, terminou com a vitória britânica e com um tratado de paz que expressava o desejo de reconciliação entre a população branca afrikaner, uma comunidade de minoria sul-africana formada por descendentes de colonos europeus que começaram a se estabelecer no sul do continente africano em 1652.

A União Sul-Africana foi criada em 31 de maio de 1910, marcando o início da transferência do domínio na África do Sul da coroa britânica para as comunidades afrikaners brancas e colonos britânicos. Ela selou a união das duas comunidades brancas, que objetivavam fortalecer o controle político e econômico do país, em detrimento da maioria africana negra da população que, em meio a uma expansão mineradora e industrial do país, foi excluída e teve seu espaço delimitado a servir como mão de obra barata.

A Lei de Terras Nativas, promulgada pelo parlamento sul-africano em 1913, proibiu os nativos, cerca de 93% da população, de adquirir terras ou trabalhar em fazendas através de arrendamentos e restringiu a propriedade de terras dos negros sul-africanos a somente 7% do território do país (expandida para 13% em 1936). A lei estabeleceu “reservas” para a população nativa, além das quais elas eram proibidas de alugar ou comprar terras, o que resultou em despejos e remoções forçadas em massa de proprietários de terras negros.

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Remoção forçada de um sul-africano negro de uma “área branca” – Fonte: Getty Images/William Campbell.

Dessa forma, incorporou-se à legislação a base para a segregação territorial sul-africana. Assim, foi consolidado um sistema duplo de posse de terras, composto por propriedades privadas e terras tituladas para a população branca, enquanto a propriedade comunal de terras era presidida por um conselho tradicional controlado pelo governo. Em mais uma ação discriminatória, a Lei de Áreas Urbanas Nativas foi aprovada em 1923, sendo a responsável pela segregação do espaço residencial urbano em áreas separadas para brancos e negros, uma forma de planejamento urbano governamental que gerou desigualdades socioespaciais que perduram até a atualidade, e instituiu “controles de influxo”, de modo a reduzir o acesso de negros às cidades.

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Documento que sul-africanos não brancos eram obrigados a carregar quando estavam em áreas destinadas aos afrikaners – Fonte: Organização das Nações Unidas (ONU).

As leis segregacionistas foram fortalecidas durante as décadas de 1930 e 40. A população negra sul-africana teve a sua representação abolida no Parlamento, os casamentos inter-raciais foram proibidos e, com a vitória eleitoral do Partido Nacionalista em 1948, o regime segregacionista do apartheid tornou-se um sistema social mantido e condicionado pelo Estado. Com isso, uma série de leis foram adotadas para garantir a pureza racial, a separação física das populações, a dominação política e controle populacional no país. 

Nos primeiros anos do apartheid, foram aprovadas três leis importantes acerca da questão fundiária: em 1950, a de delimitação de zonas geográficas, que tinha como principal critério a raça; em 1951, a legislação discriminatória no campo, que minava a capacidade dos negros sul-africanos de manterem uma terra agrícola independente fora das reservas aos nativos; e em 1954, a Lei dos Nativos, que restringiu o número de africanos em áreas urbanas, sendo assim, os negros não podiam mais viver em centros urbanos considerados como zonas brancas.

A Lei de Terras gerenciava todos os espaços, sejam eles rurais ou urbanos, e a cada grupo era atribuída uma proporção de terra com base na cor da pele e na etnia. Como resultado, bantustões, pseudo-estados de bases tribais foram criados pelo Estado, com intenção de segregar a população negra e mantê-la fora dos bairros e terras brancas. Esses espaços geograficamente pequenos eram pouco desenvolvidos economicamente, apresentavam pouca infraestrutura e privavam os direitos da população negra, como o direito ao voto, à locomoção, à uma educação de qualidade e à cidadania. Eram necessários passes para sair dos bantustões e adentrar áreas brancas, onde se encontravam os trabalhos precários destinados à população negra.

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Mapa dos bantustões estabelecidos na África do Sul durante a vigência do apartheid – Fonte: Encyclopaedia Britannica, Inc.

Como grande parte das terras aráveis da África do Sul ficaram nas mãos de fazendeiros brancos, a agricultura de subsistência não era uma atividade viável nos bantustões, o que converteu-se em uma massa forçada de jovens que saíam das reservas em busca de empregos como “trabalhadores convidados” nas indústrias em crescimento das cidades. Esse êxodo levou a um aumento na demanda por moradia nas áreas urbanas, dando origem aos assentamentos informais, áreas residenciais da população pobre que se desenvolveram por meio da ocupação não autorizada de terras.

Após décadas de segregação, massacres e resistência liderada por figuras como Nelson Mandela e pelo partido oposicionista ao apartheid, o Congresso Nacional Africano (CNA), em conjunto com pressão e sanções internacionais, o apartheid terminou em 1991, culminando nas primeiras eleições democráticas da África do Sul em 1994, em que o CNA conquistou maioria absoluta no Parlamento e Mandela foi eleito presidente da África do Sul.

No mesmo ano, foi aprovada a Lei de Restituição de Direitos à Terra, que tinha como objetivo reparar a tomada das terras de proprietários negros após a Lei de Terras Nativas de 1913 com a restituição da posse da propriedade ou com compensações financeiras. A lei também previa a reforma do sistema de posse de terras e uma redistribuição fundiária para fins agrícolas e residenciais a partir do financiamento público. Entretanto, a abordagem adotada era orientada pelo mercado, com o lema “comprador disposto, vendedor disposto”, que enfrentou críticas no país por favorecer os agricultores brancos, que tiveram a liberdade de definir seus preços de acordo com às tendências do rentismo imobiliário.

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Cena comum na África do Sul, em que sul-africanos negros trabalham em condições precárias nas propriedades dos afrikaners brancos – Fonte: Getty Images.

A redistribuição de terras não foi eficaz. Os proprietários de terras brancos não queriam necessariamente vender e, quando vendiam, os preços cobrados eram muito altos. Soma-se a isso a dificuldade dos negros de provarem que tiveram suas terras desapropriadas após 1913 e a corrupção presente nos subsídios públicos destinados à reforma agrária.

E quando os camponeses negros conseguiam adquirir terras, não atingiam uma produtividade boa, devido à falta de experiência com o setor agrário e à uma falta de suporte governamental quanto a disponibilidade de financiamentos à juros baixos que visassem incentivar a agricultura familiar, dependente de maquinários, sementes, infraestrutura, formação técnica e formas de irrigação modernas, sem as quais não conseguem competir com o poderoso setor agropecuarista da África do Sul. 

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Agricultura familiar na África do Sul – Fonte: Gazeta Mercantil.

Além disso, é importante citar o processo altamente burocrático ao qual os requerentes e beneficiários da transferência de terras eram e ainda são submetidos. Em muitos casos, eles não possuem registro ou comprovação da posse da terra, dependendo das posses sociais respaldadas pelo governo sobre a estadia e uso da terra, assegurado pela Lei de Proteção Interina dos Direitos Informais à Terra de 1996, que serve como instrumento legal que garante os direitos informais e consuetudinários das pessoas à terra em áreas comunais. Porém, essa indefinição contribui com que os direitos informais à terra sejam constantemente violados, o que dificulta os recursos das vítimas e as submetem a uma conjuntura de extrema insegurança jurídica acerca da posse fundiária.

Esse quadro tem consequências diretas na desigualdade de renda sul-africana, a maior do mundo segundo o Banco Mundial, em que a disparidade econômica, social, fundiária e urbana ainda perdura. A falta de uma política rápida e consistente de redistribuição agrária agrava os diversos problemas sociais do país herdados do colonialismo e da segregação, fazendo com que a fome, a miséria e a falta de acesso da população aos serviços prestados pelo Estado ainda continuem sendo uma realidade enfrentada pela população negra, mesmo após o fim do apartheid.  

Questão da terra na África do Sul: panorama atual

Uma auditoria de propriedade de terras realizada em 2017 contastou que os sul-africanos brancos possuíam 72% das terras agrícolas do país, enquanto os sul-africanos negros possuíam somente 4%, mesmo compondo 81,4% da população sul-africana.

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Sul-africanos negros, que compõem 80% da população, só possuem 4% das terras dos país – Fonte: New Frame/Magnificent Mndebele.

Extremamente descontentes com o progresso excessivamente lento do programa de reforma agrária e urbana comandando pelo CNA, partido que governa o país desde 1994, cresceu na África do Sul a demanda por uma distribuição mais justa e célere das terras. A Constituição Sul-Africana, promulgada em 1996, cita em seu preâmbulo a necessidade de reconhecer as injustiças do passado e estabelece que o Estado deve promover as condições que permitam aos cidadãos obter acesso à terra e à moradia adequada em condições equitativas.

Dessa forma, em 23 de janeiro de 2025, após anos de tentativas fracassadas de se chegar a um consenso acerca do melhor método de tratar a questão fundiária no país, o presidente Cyril Ramaphosa sancionou a Lei de Expropriação de Terras.

No que consiste a Lei de Expropriação de Terras aprovada?

A Lei de Expropriação de Terras permite legalmente ao governo expropriar a posse de propriedades privadas para uso público, alinhando as leis da África do Sul com a Constituição do país, especialmente com o artigo 25, que autoriza a expropriação. A nova lei adiciona como condicionante para a expropriação o interesse público, ampliando a definição de propriedade para incluir bens móveis e imóveis. Ou seja, as terras abandonadas que não cumprem a função social da propriedade podem ser expropriadas pelo Estado para que voltem a ter utilidade.

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Sul-africanos sem terra tentam construir uma casa em um terreno abandonado em Khayelitsha, perto de Cidade do Cabo – Fonte: REUTERS/Mike Hutchings.

A lei da África do Sul foi alvo de controvérsias devido a inédita possibilidade de se realizar desapropriações de propriedades sem indenizações em circunstâncias limitadas. A seção 12(3) da Lei de Expropriação estabelece:

“Pode ser justo e equitativo que não seja paga qualquer indenização quando a terra é expropriada com base no interesse público, levando em conta todas as circunstâncias relevantes, incluindo, mas não se limitando a:

(a) quando o terreno não estiver a ser utilizado e o objetivo principal do proprietário não for desenvolver o terreno ou utilizá-lo para gerar rendimentos, mas sim se beneficiar da valorização do seu valor de mercado;

(b) quando um órgão do Estado detém terras que não utiliza para as suas funções principais, não é razoavelmente provável que necessite dessas terras para as suas atividades futuras, e o órgão do Estado adquiriu as terras sem qualquer contrapartida;

(c) não obstante o registro de propriedade nos termos da Lei dos Registros de Escrituras de 1937 (Lei n.º 47 de 1937), quando um proprietário abandonou o terreno por não exercer controle sobre ele, apesar de ser razoavelmente capaz de o fazer;

(d) onde o valor de mercado do terreno é equivalente ou inferior ao valor presente do investimento estatal direto ou do subsídio na aquisição e na melhoria de capital benéfica do terreno.”

Isto é, a terra pode ser expropriada sem o pagamento de indenização se o proprietário não a estiver utilizando e estiver apenas esperando que o valor do imóvel suba para vendê-la com lucro; se um órgão governamental adquiriu a terra gratuitamente e não tem uso real para ela; se a terra foi abandonada; ou se os gastos do governo para mantê-la ultrapassarem o seu valor de mercado.

Todavia, o governo ainda não expropriou nenhuma terra sem o pagamento de indenização. A lei dispõe de regras rígidas e prevê obrigações claras em termos de consultas e notificações aos proprietários das terras em questão, que possuem o direito de fazer observações e podem recorrer a mecanismos para a resolução de disputas com o Estado. Ainda é importante ressaltar que a Lei de Expropriação não faz nenhuma alusão à distinção racial em relação à apreensão de terras.

Reações à lei aprovada e defesa do governo:

Pela primeira vez na história da democracia sul-africana, o partido CNA não alcançou maioria absoluta no parlamento, devido aos escândalos de corrupção frequentes e a sua dificuldade de lidar com a extrema pobreza e desigualdade do país. Assim, em um movimento inédito, um governo de coalizão foi formado entre o Congresso Nacional Africano e forças oposicionistas após as eleições gerais, o que indica uma frágil sustentação legislativa do presidente Cyril Ramaphosa, que garantiu um segundo mandato após o acordo que instituiu um governo de união nacional.

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Resultados das eleições gerais da África do Sul, ocorridas em maio de 2024 e que obteve o recorde de abstenção, alcançando o índice de 41%, o que expressa a falta de esperança na política por parte considerável da população – Fonte: Poder 360.

Inserida nesse contexto de união nacional, a medida do governo tem sido criticada por diversos partidos. O segundo maior partido que compõe a coalizão, a Aliança Democrática (AD), é contrária a Lei de Expropriação de Terras e defende a intangibilidade e imutabilidade do direito à propriedade, linha defendida com ainda maior radicalidade pelo Fronte Liberdade Mais (VF+), de extrema direita. Ambos os partidos são compostos, em sua maioria, pela minoria branca sul-africana e pela elite agrária e do mercado financeiro.

No entanto, contraditoriamente, à esquerda do espectro político também observa-se relutância ao compromisso com uma política de reforma agrária menos conivente com a elite agropecuarista e rentista do país. O partido esquerdista Combatentes da Liberdade Econômica (EFF), um racha do CNA, votou recentemente contra a expropriação de terras sem compensação, mesma linha seguida pelo partido Lança da Nação (MK), outro racha do CNA que é liderado pelo ex-presidente Jacob Zuma.

Por sua vez, o governo defende que a Lei de Expropriação de Terras é um marco significativo na luta pela reparação das injustiças do passado, promovendo o bem-estar coletivo a partir do uso de terras improdutivas que serão utilizadas à favor do desenvolvimento agrário, social, urbano e econômico do país. O governo ainda salienta que não há nenhuma distinção racial no cerne da lei sancionada.

À vista disso, percebe-se a centralidade da temática no governo minoritário de Cyril Ramaphosa, que terá que equilibrar diferentes abordagens no que tange à questão fundiária e evitar uma maior derrocada eleitoral do seu partido ao mesmo tempo que precisa dar celeridade à mitigação das diversas desigualdades enfrentadas pela África do Sul, cujas origens e resoluções transpassam pela questão fundiária.

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Cyril Ramaphosa, que possui um desafiador segundo mandato à frente da presidência da África do Sul – Fonte: Getty Images/Chris McGrath.

Entraves diplomáticos entre EUA e África do Sul

Questão Humanitária 

A relação entre esses dois países tem sido bastante tensionada pelo governo Trump, com uma escalada no último mês. A partir da entrada do republicano, projetos de corte de verbas são um dos focos da nova gestão e, dentro dessas ações, supervisionadas por Elon Musk, o país cortou verbas da agência USAID, sigla em inglês para ‘Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional’, de ajuda humanitária, que trabalhava no controle e assistência médica a AIDS no mundo todo. Vale citar que Musk, um ávido crítico ao governo de Ramaphosa, é um sul-africano cuja família começou a construir a sua fortuna e influência durante a vigência do apartheid. 

Os EUA correspondiam a 38% das contribuições para esse fundo, sendo o maior doador do mundo, segundo o que foi registrado pelas Nações Unidas no ano passado. No entanto, o fim do financiamento, que equivalia a 17% do orçamento de testes, tratamentos, pesquisa e monitoramento de pacientes na África do Sul, representou um grande desfalque para o país africano na crise epidêmica de HIV que seu povo vive desde 2006. São 8 milhões de pessoas infectadas convivendo com o vírus, sendo as mulheres de 19 a 24 anos e crianças o principal grupo de risco, no país com a maior taxa de HIV do mundo.

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Tenda de teste de HIV da USAID, na África do Sul – Fonte: Bram Janssen/AP/picture alliance.

Questão Diplomática 

Além do golpe aos recursos humanitários, houve ataques no âmbito político vindos do presidente norte-americano. O boicote diplomático é referente à declaração de não participação dos EUA na próxima cúpula do G20, fórum internacional que reúne as principais economias do mundo e que acontece em novembro deste ano em Joanesburgo, na África do Sul. Isso se deu devido à polêmica causada pelo republicano sobre a Lei de Expropriação e, na opinião do governo Trump: 

“A África do Sul está fazendo coisas muito ruins, expropriando a propriedade privada. […] Meu trabalho é promover os interesses nacionais dos Estados Unidos, não desperdiçar o dinheiro do contribuinte ou mimar o antiamericanismo”, disse Marco Rubio, Secretário de Estado, em uma postagem no X, antigo Twitter.

Sobre o tal ‘desperdício de dinheiro’, Rubio refere-se ao corte de financiamento da cúpula em que foi enviado somente US$2 bilhões, mas o valor acordado era de US$6 bilhões.

Nesse cenário hostil, ainda em sinal de desaprovação às políticas internas sul-africanas, o embaixador do país subsaariano, Ebrahim Rasool, foi expulso da embaixada sul-africana em Washington DC baseado na conspiração do ‘antiamericanismo’. Em resposta, o presidente Ramaphosa viajou à Casa Branca como uma tentativa de acalmar os ânimos entre os países.

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Cyril Ramaphosa e Donald Trump em reunião na Casa Branca – Jim Watson / AFP.

Entretanto, o líder sul-africano foi recebido com acusações, que mais tarde revelaram se tratarem de fake news, de que estaria acontecendo um genocídio de pessoas brancas, descendentes de holandeses, em razão da reforma agrária. Após mostrar vídeos e imagens de procedência duvidosa, Trump recriminou a ‘situação’: “Suas terras estão sendo confiscadas e, em muitos casos, elas estão sendo mortas. Quando eles tomam a terra, matam o fazendeiro branco […] como uma limpeza étnica”. Em seguida, Ramaphosa argumentou: “a criminalidade na África do Sul afeta tanto brancos quanto negros”, também reconheceu que já ocorreram assassinatos de fazendeiros brancos mas que são uma fração pequena do quadro de criminalidade do país.

O material que o presidente norte-americano mostrou no Salão Oval pertence ao jornalista Djaffar Al Katanty, na ocasião em que ele fez filmagens de trabalhadores humanitários transportando sacos mortuários após violentos combates entre o exército congolês (FARDC) e os rebeldes do M23; o vídeo foi publicado pela revista Reuters em fevereiro de 2025. O texto apresentado por ele foi retirado de um blog chamado ‘American Thinker’, e faz severas críticas ao governo do sul-africano dizendo que “há uma pressão crescente sobre os brancos sul-africanos”. Segue abaixo a imagem plagiada por Trump:

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Imagem plagiada que Trump usou para fazer falsas alegações – Fonte: Reuters.
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Trump exibindo seu material falso, em que é mostrado imagens de um conflito no Congo –  Fonte: Reuters.

Tais alegações ganharam forma depois que uma operação de reassentamento de refugiados foi promovida pelo governo atual dos EUA, em que 59 afrikaners foram levados ao país sob a condição de refugiados em março de 2025, já que essa gestão os vê como um grupo racialmente discriminado em seu país de origem, a África do Sul. Trump chegou até a assinar uma ordem executiva que dizia haver violações dos direitos humanos contra pessoas brancas no país sul-africano, citando o caso da sanção da reforma agrária.

Contudo, é importante mencionar que a violência na África do Sul é endêmica, ocupando o segundo lugar no ranking de taxa de homicídios, segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime. Apesar do estado devastador do país, não há indícios de justificativas raciais ou ideológicas para o cometimento de violência ou assassinatos à população afrikaner. A maioria das mortes ocorrem nos centros urbanos e quando há homicídios em fazendas, geralmente as vítimas são negras e os crimes respondem às circunstâncias e dinâmicas locais de segurança precária e montantes de dinheiro dentro de propriedades isoladas. As pessoas brancas continuam a ocupar o topo da elite socioeconômica e ainda usufruem dos privilégios herdados do regime de segregação do apartheid.

Também vale ressaltar que refugiados são pessoas que saem, forçadamente, do país de origem e que o retorno apresentaria risco à sua integridade física, além de se tratar de uma classificação de proteção legal internacional. Portanto, essa condição não poderia ser aplicada aos afrikaners que foram convidados a participarem do programa de reassentamento de Trump, já que não existem fatos concretos que comprovem alguma perseguição à esse grupo.

Questão Econômica

O tarifaço da administração Trump provocou animosidade com praticamente todos os países do globo. Diversos acordos econômicos tiveram de ser revistos, dentre eles o African Growth and Opportunity Act, ou AGOA, um programa entre EUA e alguns países africanos com o intuito de facilitar as trocas comerciais através do acesso duty free, ou seja, sem aplicação de determinadas taxas locais ou internacionais, para 1800 produtos diferentes. A previsão para renovação ou encerramento desse programa é setembro de 2025, o que tem gerado insegurança nos líderes sub-saarianos, pois o término desse acordo, em adição à implementação mundial de tarifas de no mínimo 10%, culminará na redução produtiva, na desaceleração econômica e gerará inflação e desemprego.

Analistas econômicos africanos, como Tsonam Akpeloo, presidente da Associação das Indústrias de Gana, recomendam que o continente trabalhe pelo seu fortalecimento interno, como por exemplo, a partir de incentivos ao African Continental Free Trade Area (AfCFTA), a zona de livre comércio do bloco africano. A ideia é tonificar as relações comerciais intra-África, em um movimento de desprendimento para com as potências hegemônicas mundiais.

Em soma ao tarifaço, Trump também ameaçou a África do Sul indiretamente por causa das movimentações internas dos BRICS para uma desdolarização de suas economias, ameaçando que os países integrantes “sofreriam as consequências”, que seriam embargos comerciais, taxação de 100% para exportações e boicotes. Enquanto as conversas sobre a criação de uma moeda comum para o bloco avançam, nações integrantes já realizam transações em suas moedas locais com o objetivo de facilitar e baratear as trocas, e diminuir sua dependência em relação aos EUA, dada a uma nova postura anti-imperialista e anti-hegemônica desses países. Américo Martins, analista da CNN, entende as ameaças de Trump como uma “estratégia para impor uma nova ordem que ignore os organismos multilaterais, estabelecendo uma ‘lei do mais forte’ nas relações comerciais internacionais”.

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Líderes do BRICS de mãos dadas na última cúpula do G20 no Rio de Janeiro em 2024, da esquerda para a direita: Primeiro Ministro da Índia, Narendra Modi; Presidente do Brasil, Lula; Presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa; Presidente da China, Xi Jinping – Fonte: Getty Images.

Por que Trump está se esforçando tanto para manchar Ramaphosa?

Causar discórdia, espalhar rumores, fake news e criar grandes shows é parte conhecida da forma de operar do presidente estadunidense. Porém, existe alguma razão a mais para essa investida contra Ramaphosa? 

Uma explicação pode ser o desafio à autoridade dos Estados Unidos sobre o conflito entre Israel e o grupo terrorista Hamas em Gaza, na ocasião em que o governo da África do Sul declarou na Corte Internacional de Justiça (CIJ) que Israel está colocando em curso um genocídio contra o povo palestino. Em documento oficial, a comissão sul-africana apresenta evidências de “atos de omissão” de Israel cujos “têm caráter genocida porque visam causar a destruição de uma parte substancial do grupo nacional, racial e étnico palestino”. A denúncia gerou forte rejeição israelense e, consequentemente, o prenúncio desse estremecimento das relações com os EUA. 

“Nossa oposição ao massacre em curso do povo de Gaza nos levou, como país, a recorrer à CIJ”, disse o presidente Cyril Ramaphosa. “Como um povo que já experimentou os frutos amargos da desapropriação, da discriminação, do racismo e da violência patrocinada pelo Estado, temos a certeza de que permaneceremos do lado certo da história.”

Por fim, não se pode esquecer que um dos fundamentos da extrema direita, viés político que vem se mostrando cada vez mais latente na administração Trump, Make America Great Again (MAGA), são as teorias da conspiração, muitas vezes supremacistas. É comum o uso de imagens manipuladas, plagiadas, e agora com as inteligências artificiais, tornou-se mais fácil criar imagens ou vídeos que corroboram com sua ideologia e que possuem grande poder de repercussão. É essencial, como espectador, checar fatos e ter responsabilidade no compartilhamento de informações. 

Fontes: 

https://www-bbc-com.translate.goog/news/articles/ce9vxve994ro?_x_tr_sl=en&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=pt&_x_tr_pto=tc&_x_tr_hist=true

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https://www.reuters.com/world/africa/under-attack-by-trump-south-africas-ramaphosa-responds-with-trade-deal-offer-2025-05-21

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