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As Lições do Juiz Brasileiro Na Omc

As Lições do Juiz Brasileiro Na Omc

Célia de Gouvêa Franco, De São Paulo

Entrevista Luiz Olavo Baptista sugere que o Brasil adote a simplicidade seguida no organismo internacional
Aos 64 anos, 40 desde que se formou em direito, uma lista de títulos e cargos importantes – a começar pelo fato de fazer parte do exclusivo grupo de sete juízes do órgão de apelação da Organização Mundial do Comércio (OMC) -, Luiz Olavo Baptista posa para a fotografia que ilustra esta página em mangas de camisa, sem a pompa e a formalidade que normalmente se associa aos advogados. E diz que um das principais lições que aprendeu em seu trabalho na OMC, iniciado em dezembro de 2001, é a busca da simplicidade, seja nas relações de trabalho seja nas estruturas. Crítico ao formalismo que impera no mundo da advocacia, ele comenta também a imagem do Brasil na OMC e a “esclerose cultural” do país.

Professor de direito do comércio internacional da USP, Baptista passa a maior parte do seu tempo fora do Brasil – e em aeroportos, lendo livros de ficção. As leituras de trabalho, ele faz em lugares onde não corre risco de alguém aproveitar para dar uma olhada. As viagens são para atender à demanda do seu posto na OMC, mas também por causa de outras funções, como a de árbitro em casos internacionais. Recentemente, ele atuou em uma disputa entre o governo argentino e uma empresa americana. No passado, trabalhou como consultor do centro das corporações transnacionais da Organização das Nações Unidas e para vários países, como Angola e Tailândia, aconselhando sobre a legislação para investimentos externos. A seguir os principais pontos da entrevista:

Valor: O que o sr. aprendeu na sua experiência como juiz da OMC?

Luiz Olavo Baptista: Aprendi como os países operam no comércio internacional. Vi o lado prático do que conhecia teoricamente. Descobri que 90% dos livros sobre a OMC estão falando sobre algo que não existe. Eu já tinha visto isso em relação ao Mercosul – as pessoas discutem e criticam um Mercosul que só existe na cabeça delas. E ninguém fala do que existe de verdade.

Valor: E a visão que o sr. tem hoje da OMC é melhor?

Baptista:
 É uma visão que traz muitos aprendizados. Por exemplo: o órgão de apelação tem 7 juízes, 14 funcionários e ocupa uma área de 500 metros quadrados. O prazo máximo para se resolver qualquer caso é de 90 dias e esse prazo nunca foi ultrapassado, sendo que desses 90 dias é preciso subtrair 17 dias para os tradutores e mais 15 dias para as partes apresentarem os seus arrazoados. Os juízes da OMC são tratados de senhor ou de você pelos funcionários e pelas partes. Eles pagam o estacionamento no prédio, como qualquer pessoa, escrevem eles mesmos nos seus computadores. O processo é absolutamente simples, temos não mais do que duas dezenas de regras, que permitem resolver todas as situações. O jeito de trabalhar é mais simples e eficiente do que o dos nossos tribunais.

Valor: O Brasil teria muito que aprender com as normas da OMC?

Baptista: Eu diria que a melhor coisa que o poder Judiciário, o Supremo Tribunal, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) poderiam fazer é tentar copiar esses procedimentos. Só para comparar: o STJ ocupa um alqueire e meio de construção, tem mais de 30 mil funcionários. No Supremo, os 11 juízes têm 2 mil funcionários. Outro exemplo: na OMC, pagamos o nosso próprio seguro de saúde. E ninguém estranha porque os juízes dos tribunais superiores dos países desenvolvidos têm as mesmas condições.

Valor: Na OMC, os juízes se reúnem para tomar uma decisão ou tudo é feita via e-mail?

Baptista: Nos encontramos para tomar decisões. Cada caso não é decidido pelos sete juízes, mas sim por três, escolhidos pela aplicação de uma fórmula matemática que torna aleatória a escolha. Quando um caso vem à tona, os “sorteados” comunicam à OMC que não têm impedimento para fazer parte desse julgamento. mas boa parte da comunicação é feita via e-mails.

Valor: Na época da sua escolha para ser juiz da OMC, o sr. disse que não haveria impedimento para julgar casos que envolvessem o Brasil, mas que se sentiria mais confortável não julgando. Isso ocorreu?

Baptista: Não, não aconteceu, mas hoje com minha experiência sei que, se eu não tiver nenhum interesse pessoal direto ou indireto no caso, posso decidir sem problema nenhum. Não me sentiria constrangido porque a gente vê os casos de forma muito abstrata quando os analisa. Outra coisa que eu aprendi na OMC é o rigor ético do comportamento de nós todos. Eu fui convidado agora, por exemplo, pela Ordem dos Advogados e pela Associação Internacional dos Advogados para fazer uma conferência em que me pediam para falar sobre a OMC. Eu respondi que não podia aceitar porque a “síndrome de Marco Aurélio” se passa, passa por contágio direto, eu não tive. Não posso falar sobre o que vou julgar. Nenhum de nós aceita convite, benefício ou presente de qualquer tipo ou valor de qualquer país envolvido em algum caso. Estamos preocupados com a realidade, mas também com a aparência.

Valor: Como a mulher de César?

Baptista:
 É, precisamos dar demonstração da nossa independência e austeridade. A força moral da OMC vem disso. Nunca ninguém disse, nos oito anos de existência da OMC, que houve um julgamento que não tivesse sido absolutamente isento. Há quem goste e quem não goste, o que é natural porque quem perde não fica satisfeito e quem ganha nunca acha que ganhou tudo o que queria.

Valor: Quantos anos é o mandato de um juiz na OMC?

Baptista: É de quatro anos. Eu não tomei posse do cargo. Eu fui convidado a assumir um compromisso. Até porque quem toma posse se apropria de alguma coisa, às vezes para usar em causa própria. E quem presta um compromisso é para servir aos outros. Essa distinção semântica é importante.

Valor: Quantos casos o sr. foi chamado a julgar desde que assumiu?

Baptista: Estamos no 13º caso.

Valor: Entre os juízes, há alguma mulher?

Baptista: Ainda não. Na faixa de idade em que nós, os juízes, estamos – todos de 60 anos para cima -, as mulheres não tinham um papel suficientemente importante na advocacia. Eram muito poucas, agora são muito mais. O que é interessante é que lá também não há aposentadoria compulsória por causa da idade. O mandato é de quatro anos, mas há a possibilidade de recondução. Outra coisa que aprendi foi um exercício de humildade intelectual: decidimos por consenso. A regra de funcionamento da OMC é o consenso. As pessoas não puseram bem isso na cabeça, mas o que se busca é que a humanidade estabeleça consensualmente suas regras e também consensualmente se chegue à interpretação dessas regras. A idéia de que predomina a vontade da maioria na interpretação não é boa porque seria o predomínio das idéias de um grupo sobre outro.

Valor: Deve ser difícil se chegar a um consenso em certos casos, não?

Baptista: É difícil. Retomando o que estava contando antes: quando um juiz é escolhido para determinado caso, recebe as apelações, prepara-se e aí você marca uma reunião na qual se fazemos o estudo conjunto do caso. Então, fazemos a audiência, que dura de um a três dias em que as partes envolvidas são ouvidas durante um certo período de tempo. Eles falam e depois respondem às nossas perguntas. Eu presidi uma audiência em que fizemos, por exemplo, uma centena de perguntas para as duas partes. Uma parte responde e a outra pode comentar depois.

Valor: São sessões mais informais, então, do que se imaginaria que ocorre na OMC?

Baptista: É de um formalismo diferente. Por exemplo, quem quer falar levanta uma plaqueta com o nome do seu país. E num dia de calor, todos podem tirar o paletó e ninguém se sente insultado por causa disso. Até porque todos nós já vimos homens sem paletó… Ninguém é obrigado a se levantar quando entram os juízes. Todos dizem boa dia, boa tarde, sem chamar ninguém de excelência.

Valor: E a língua é o inglês?

Baptista: Normalmente, tem se usado o inglês. São três as línguas oficiais – inglês, espanhol e francês – mas há mais pessoas que falam inglês ou que usam usam palavras em inglês…

Valor: E qual é a imagem do Brasil na OMC?

Baptista: O Brasil tem uma imagem boa porque é um país que negocia e cumpre os compromissos. O Brasil tem ganho mais casos do que perdido. O que o Brasil passa também é uma imagem de país em desenvolvimento porque não tem ainda o suporte interno – como advogados, economistas, pesquisadores etc – em número suficiente e precisa buscar essa gente no exterior. Isso é danoso para a imagem do país. O ideal seria que não só tivéssemos esses profissionais aqui no país mas que também pudéssemos exportá-los, a título até de cooperação com países que têm menos recursos e menos população.

Valor: Nos casos atuais do Brasil, do açúcar contra a União Européia e da soja contra os Estados Unidos…

Baptista: Parece que nesses casos as entidades empresariais foram contratar gente lá fora. E eu posso dizer que eles poderiam ter contratado advogados no Brasil, com conhecimento suficiente. Poderiam pelo menos ter formado uma equipe mista porque na próxima vez teriam um grupo brasileiro já experiente que custaria da metade a um terço do que custa uma equipe do exterior. A hora de trabalho de um advogado americano custa US$ 400 a US$ 600 e ela é contada do momento em que ele sai do seu escritório até o momento em que volta, entra sábado, domingo, feriado. Eles viajam normalmente de primeira classe, querem hotéis de quatro estrelas para cima. Trabalham quase sempre com equipes grandes porque levam jovens advogados cuja função é carregar as malas e aprender. No Brasil, você consegue negociar com os advogados um pacote, com valor fixo, o que seria muito mais conveniente. Dizem que a Embraer gastou o preço de um avião inteiro para se defender nas brigas na OMC, não sei se é verdade. Aqui no Brasil um advogado custa de R$ 400 a R$ 600 a hora. E há gente capaz. Por exemplo, em economia agrícola, há o Marcos Jank, o Guilherme Dias e outros que têm condições de fazer qualquer estudo nessa área. Mas não são só eles. Há o centro tecnológico da Coopersucar. O problema é que ninguém é profeta em sua própria terra.

Valor: O sr. acha que houve mudança, com o novo governo, na política comercial externa do Brasil?

Baptista:
 Quando se muda embaixador, muda ministro, muda-se o estilo, a tática, mas você não pode mudar uma estratégia de longo prazo em um país do tamanho do Brasil. Porque o Brasil é como um transatlântico, não pode querer fazer a mesma curva que um barquinho faz. As mudanças de rumo em um país como Brasil são lentas e só são percebidas a longo prazo. Outra coisa que aprendi vivendo parte do tempo em outros países é que embora seja novo o Brasil é um país esclerosado.

Valor: Em que sentido?

Baptista: É esclerosado no sentido que tem uma rigidez cultural e social imensa, é um país que só faz as mudanças no nível legislativo, não faz as mudanças substanciais. O Brasil é um país onde não acabou o processo de abolição da escravatura tanto que o governo ainda tem que combater o trabalho escravo. Se você der uma volta por qualquer cidade, vai ver que tem famílias mantendo domésticas em um regime que está próximo da escravidão. E também não terminou o processo de implantação da República: não temos ainda cidadãos. Temos uma aristocracia – aí há um problema semântico: os deputados se dirigem um ao outro como nobre deputado. Por mais de esquerda e popular que seja, exige ser tratado de nobre deputado. Isso me lembra um decreto do D João VI, que regulou o tratamento a ser dado às pessoas conforme o número de cavalos que puxava suas carruagens: quem tivesse quatro cavalos era tratado de excelência, quem tivesse dois cavalos era ilustríssimo, quem tivesse um só era vossa senhoria, quem andasse a cavalo era vosmecê e o resto era tratado por tu. Isso continua valendo: quem anda de carro oficial é excelência, quem está num carro é doutor e o resto é você ou tu.

Valor: Mudar esse comportamento não é mais difícil do que alterar a rota de um transatlântico?

Baptista:
 Vejo que a nossa esclerose fez com que inventássemos o exorcismo legal. Todo o problema que nasce é demonizado, imediatamente se exige que o Congresso vote uma lei para exorciza-lo.

Valor: O sr. poderia dar outro exemplo de esclerose social?

Baptista: Temos uma lei de execução criminal que impede que sejam tomadas as medidas necessárias para segurança da própria prisão. No mundo inteiro, todo criminoso que representa um perigo para a segurança e a vida das pessoas tem um tratamento que o mantém totalmente isolado de contato físico ou pessoal com qualquer pessoa de fora da prisão. Ele não tem direito a ter celular. Aqui, a lei de execução criminal não permite que se separe o criminoso por tipo de crime. Deveria ser possível por todos os assaltantes de banco, por exemplo, juntos num lugar para eles não ensinarem os outros a assaltar bancos. E como esses têm um grau de periculosidade grande, eles precisam de mais guardas. Mas os sujeitos que são batedores de carteira ou estelionatários não vão fugir com violência, vão tentar fugir com esperteza. Então, com menos carcereiros e menores gastos podemos manter essa gente presa. Seria possível escalonar até o gasto e a dimensão da prisão conforme o tipo de crime. A atual estrutura não permite isso.

Valor: O ministro Marcio Thomaz Bastos, da Justiça, poderá corrigir essas distorções?

Baptista: Não sei porque ainda não li sobre o que ele está pensando. O que eu sei é que ele é um homem generoso, inteligente, culto e preparado. Tem as condições pessoais de fazer muita coisa boa. O que eu não sei é se ele vai conseguir por para funcionar as idéias que tem. A esclerose tem a ver com o custo dos nossos produtos. No mundo inteiro, essa história de reconhecimento de firma não existe. Esses custos burocráticos que ainda temos aqui foram eliminados. O problema não é apenas o dinheiro, mas a perda de tempo que eles representam. No mundo inteiro, um funcionário não pode exigir de você nenhum papel, nenhum providência que não seja determinada expressamente pela lei. Outros exemplos que ficaram dos tempos coloniais são as exigências de usar corretor de seguro, corretor de câmbio, que encarecem os custos empresariais.

Valor: Como tudo isso se reflete na forma como o Brasil participa das negociações internacionais?

Baptista: 
Tudo isso reflete um conservantismo que aparece também nas negociações da OMC. Às vezes, estamos discutindo questões que não têm mais sentido serem discutidas. Hoje, não é tão importante uma barreira tarifária quanto uma barreira técnica ou a nomenclatura dos produtos. Quando digo o Brasil não estou me referindo aos diplomatas porque eles sabem o que é mais importante. O que dá problema mais é a sociedade. Fixou-se na cabeça das pessoas que é preciso ir à OMC para brigar, para demandar quando o espírito da OMC é de evitar a demanda e incentivar a negociação. A demanda é a confissão de que os negociadores fracassaram. Não temos ainda no Brasil uma experiência e cultura de técnica de negociação suficientemente desenvolvida como há em outros países. Não aprendemos ainda a fazer o que eles fazem em grande quantidade que são as barganhas cruzadas.

Valor: O que são essas barganhas cruzadas?

Baptista: Vou dar um exemplo: ao negociar com a Europa, proponho, por hipótese, que os europeus tirem o subsídio ao açúcar. Em troca, ofereço por exemplo a escolha do padrão da TV digital porque o valor econômico dessas questões seria semelhante. O resto, vamos discutir. Mas para que isso seja possível o governo tem que negociar internamente, antes. É isso o que fazem os EUA, os europeus. É mais fácil você negociar um produto contra outro do que 50 contra 50. E outra coisa que não fazemos é ter nas negociações um mecanismo de lobby e marketing. Se eu fosse o presidente da Única (a entidade que representa o setor sucroalcoleiro), em vez de estar gastando com escritório de advocacia americano para a disputa na OMC (contra os europeus), teria feito um filme mostrando a miséria das crianças cortadoras de cana no Nordeste e no final do filme diria: E tudo isso porque se dá subsídio à beterraba. E colocaria o filme nas televisões européias. Não precisaria nem da OMC para resolver a questão.

Valor: O sr. tem esperanças ainda de que essa nova rodada de negociações na OMC tenha sucesso?

Baptista: Gosto sempre de olhar essas questões com a perspectiva histórica. Do início do GATT, em 1946 até o fim dele em 1994, quando começou a OMC, houve várias rodadas de negociações, algumas muito chochinhas, não deram em nada, outras mais gordinhas. Sempre na seqüência de uma rodada muito produtiva vem uma mais pobre porque a evolução na abertura do comércio depende da opinião pública, da convicção de que é preciso abrir mais o comércio. Em segundo lugar, é preciso haver uma necessidade de ampliar o comércio e melhorar as condições. A negociação não depende da vontade, depende da condição social. Se um país está vivendo uma crise econômica passa a ter dificuldade de negociar porque não quer piorar sua situação, com mais abertura do comércio. Como no Brasil, em que se sabe que o governo não pode fazer grandes aberturas porque precisa da indústria instalada aqui, que paga impostos e ajuda a reduzir os déficits. As negociações serão mais ou menos produtivas por essas razões. A minha sensação é de que a atual vai dar resultados, não os resultados que alguns setores esperam e que fizeram a imprensa crer que haveriam. E a OMC não vai morrer por causa disso. Simplesmente não vai evoluir mais. As multinacionais vão ficar infelizes porque para elas quanto mais abertura melhor porque o mundo vira um grande mercado.

fonte: VALOR ECONÔMICO
14/4/2003

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