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Ataques às universidades: entre o autoritarismo e o ódio ao conhecimento

Ataques às universidades: entre o autoritarismo e o ódio ao conhecimento

Por Stefano Romano

A autonomia universitária sob ataque em todo o mundo

O conceito de Autonomia Universitária 

No ano de 859 dC, foi fundada a Universidade al Quaraouiyine, a primeira do mundo, localizada dentro das atuais fronteiras do Marrocos. Séculos depois, já no início da Baixa Idade Média, a Europa tornou-se palco da criação de algumas das instituições mais renomadas da atualidade, com destaque às pioneiras Oxford e Cambridge, no Reino Unido. Com o passar dos séculos, tais instituições cresceram em força e número em todo o mundo e, atualmente, já somam centenas de milhares que, em todos os continentes, contribuem diariamente ao progresso material e científico da humanidade.

As universidades, atualmente, dedicam-se principalmente à formação acadêmica e profissional das juventudes, de modo a atender às demandas da sociedade por mão-de-obra qualificada. Entretanto, o papel dessas instituições vai muito além disso: o campus universitário é um solo fértil para o cultivo do espírito crítico, a partir do conhecimento e da liberdade de pensamento. Para a realização dessas potencialidades, porém, é necessária a Autonomia Universitária.

A origem do conceito de Autonomia Universitária remete a 1158, quando o então Imperador do Sacro Império Romano-Germânico, Frederico I, promulgou a Constitutio Habita. Tal lei, pela primeira vez, instituiu oficialmente a Universidade como o local em que a atividade intelectual deveria ocorrer livremente, sem a interferência de qualquer outro poder, tendo sido responsável por afastar os docentes do império das censuras propostas pela Igreja Católica. Atualmente, esse conceito remete à independência das escolas superiores nas dimensões didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial.

O ataque à Autonomia Universitária, todavia, é uma constante ao longo da história: os campi são espaços propícios à circulação de ideias progressistas e revolucionárias; são ambientes onde, constantemente, dogmas e verdades ditas “absolutas” são colocadas em xeque; são, acima de tudo, um convite ao pensamento crítico acerca das rígidas estruturas que constituem o mundo em que vivemos. Esse papel, como é de se esperar, é fonte de incômodo a grupos cujos privilégios e ideais não combinam com a liberdade. Os ataques à Autonomia Universitária, portanto, tornaram-se ferramenta comum a figuras despóticas, desde a origem das muitas universidades do mundo até os dias de hoje.

Governos autoritários nunca se deram bem com as universidades, uma vez que estas representam justamente o oposto do que eles defendem, isto é, a liberdade de pensamento. É de se esperar, portanto, que a ascensão política do autoritarismo impulsione a violação da autonomia das universidades. 

Ataques à Autonomia Universitária: um breve histórico

Os primeiros casos mais famosos de violação da liberdade de professores e alunos nos campi datam da Idade Média, momento em que a Igreja Católica centralizava a regulamentação da sociedade européia a partir dos dogmas bíblicos. Nesse período, os escritos cristãos e a palavra do Papa protagonizavam o fornecimento de explicações acerca do funcionamento do universo e, portanto, práticas científicas cujos resultados experimentais contrariavam a “palavra de Deus” eram alvo de censura. 

Foram nas universidades, entretanto, que surgiram e ganharam destaque muitos dos pensadores iluministas que, a partir da valorização da racionalidade, possibilitaram, ao longo dos séculos, uma crescente deslegitimação das investidas papais contra a ciência. Isso não significou, porém, que haveria um fim nos ataques autoritários às universidades, os quais nunca deixaram de existir, fossem eles protagonizados pelos monarcas, por ditadores, pela própria sociedade civil ou por outras figuras.

No fim do século XX, entretanto, após um longo período de guerras e totalitarismos inaugurado na Primeira Guerra Mundial e finalizado pela queda do muro de Berlim, o mundo viveu uma grande onda de democratização. Cada vez mais, regimes autoritários caminhavam em direção ao status de exceção, rodeados por um mundo onde o modelo republicano liberal configurava-se como molde para o progresso humano. Esse movimento possibilitou, como consequência, a ampliação da Autonomia Universitária nas cada vez mais numerosas e consolidadas democracias.

Um caso emblemático nesse processo foi o brasileiro. Desde 1964, o país vivia um dos períodos mais sombrios de sua história, a Ditadura Militar. Nesse sentido, por mais de 20 anos, o governo de extrema direita manteve-se no poder mediante a violenta repressão aos seus opositores ideológicos. Esse modus operandi, é claro, teve as universidades brasileiras como importantes alvos: entidades como a União Nacional dos Estudantes (UNE), as Uniões Estaduais dos Estudantes (UEE’s) e os Diretórios Centrais Acadêmicos (DCE’s) centralizavam o movimento estudantil e, portanto, eram importantes atores políticos na resistência ao autoritarismo. Para além do frequente espancamento e tortura de seus militantes, em 1968, com a assinatura do AI-5 (decreto responsável pelo recrudescimento do regime), o governo colocou tais organizações na ilegalidade. Além disso, não era incomum, ao longo desse período histórico, a perseguição, tortura e até sumiço de professores unversitários, assim como a censura aos conteúdos das pesquisas científicas e dos currículos.

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Na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, bandeira da UNE hasteada em meio ao IV Encontro Nacional dos Estudantes, em 1978. Fonte: Arquivo público do Estado de São Paulo.

Os ataques à autonomia universitária foram de suma importância à manutenção do regime militar brasileiro, tendo sido um dos importantes fatores responsáveis por sua longevidade. Entretanto, tais violações não durariam para sempre: em 1985, em consonância com a onda mundial de democratização, a ditadura militar chegou ao fim e, 3 anos depois, em 1988, foi escrita uma nova constituição para o país. Nesta, ganha destaque o Artigo 207: “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”. Em outras palavras, finalmente, as Universidades brasileiras gozariam novamente da independência necessária à plena realização de suas potencialidades científicas e acadêmicas. 

Entretanto, quase 3 décadas depois, a crescente ocorrência de ataques à comunidade acadêmica, não só no Brasil como em muitos outros países, reacende a memória dos estudantes acerca de um período que, acreditava-se, tinha ficado no passado. A violação da liberdade acadêmica, após décadas, se fortalece novamente: trata-se, é claro, de um reflexo da ascensão do populismo antidemocrático em escala global.

A crise mundial da democracia, o negacionismo e a academia

No fim do século XX, como já contemplado anteriormente neste artigo, o mundo viveu uma ampla onda de expansão da democracia. Nesse sentido, países latino-americanos, ibéricos, africanos, da antiga URSS e de outras regiões do globo optaram por deixar de lado o passado autoritário e, portanto, abraçaram modelos governamentais republicanos. 

Todavia, passadas décadas desse processo, a tendência de liberalização crescente da humanidade sofre hoje um duro golpe: nos mais diversos cantos do mundo, líderes políticos autoritários se fortalecem, configurando o atual momento histórico como um tempo de ruptura e desrespeito perante as instituições e bases da democracia. Personalidades populistas e disruptivas como Donald Trump (EUA), Javier Milei (Argentina), Viktor Orban (Hungria), Giorgia Meloni (Itália), Nicolás Maduro (Venezuela) e, é claro, Jair Bolsonaro (Brasil) tomam os holofotes da comunidade internacional, gerando preocupações acerca do futuro incerto das democracias que os elegeram.

As estratégias políticas autoritárias desses governantes são dos mais variados tipos. Como exemplo, cita-se a intolerância perante minorias, o conservadorismo, a agressividade com a oposição política, a deslegitimação de processos eleitorais, entre outros. Ganha destaque, entretanto, a maneira comum de lidar com a comunidade universitária: através de constantes ataques à sua autonomia. 

Nesse sentido, não é raro que os déspotas do século XXI imponham às universidades de seus países interferências do executivo nas estruturas de gestão, excessivos controles financeiros e restrições à pesquisa e ao ensino. A partir disso, faz-se possível o favorecimento de iniciativas e grupos universitários consoantes com a ideologia governamental. Além disso, as restrições orçamentárias tornam-se instrumentos de chantagem para exigir outras mudanças institucionais. É comum também a criminalização de acadêmicos e a militarização dos campi. Juntas, iniciativas como essas minam a capacidade dessas instituições de conduzir livremente o ensino e a pesquisa, limitando, portanto, a circulação do pensamento crítico dentro das fronteiras dos países. 

Tais estratégias já são há muito tempo empregadas pelas grandes ditaduras da atualidade. A exemplo disso, tem-se o caso da Rússia, governada por Vladimir Putin há mais de 20 anos. Em 2013, seu governo aprovou uma lei federal voltada à limitação da autonomia financeira das universidades e, a partir de então, o gerenciamento orçamentário de tais instituições passou a concentrar-se nas mãos do Ministério da Educação e Ciência.

Outro exemplo disso é o caso da Venezuela, onde já foi feita pelo governo de Nicolás Maduro a intervenção em entidades representativas e a criação de instituições dependentes do executivo, além das variadas tentativas de abafar expressões de oposição que nascem nas universidades.

A novidade que assusta acadêmicos de todo o mundo, entretanto, é a crescente adoção dessas estratégias em governos democráticos, por líderes eleitos pelo voto popular. Nesse sentido, discursos agressivos de políticos da extrema direita promovem a estigmatização da comunidade acadêmica: a universidade passa a ser tratada como um espaço de doutrinação comunista, onde professores e alunos supostamente conspiram em favor de ideais contrários aos valores tradicionais de suas respectivas nações. 

Além disso, o próprio valor da ciência é colocado em dúvida: movimentos negacionistas de extrema direita, muitas vezes associados ao extremismo religioso, promovem, por meio das Fake-News, a dúvida generalizada acerca da veracidade de conceitos e explicações já comprovados por especialistas em universidades. O exemplo mais evidente disso na história recente remete à pandemia do Covid-19. Neste momento, líderes políticos como Donald Trump e Jair Bolsonaro recusaram-se a lidar com a pandemia da maneira sugerida por especialistas e pesquisadores do ramo da saúde, assim como ativamente negaram a eficácia das vacinas, resultando em centenas de milhares de mortos pela doença nos EUA e no Brasil.

Dessa maneira, a estigmatização da classe acadêmica, em conjunto com o negacionismo, servem como base legitimadora para que tais líderes obtenham apoio popular suficiente para sufocar a autonomia das universidades de seus países. Dessa maneira, institucionaliza-se a perseguição ao pensamento crítico universitário que sempre foi uma “pedra no sapato” dos mais sanguinários ditadores da história.

Os ataques da extrema direita às universidades, portanto, já ocorrem em todos os cantos do mundo. Na Hungria, por exemplo, o presidente Viktor Orbán promoveu a privatização de diversas instituições universitárias, assim como fechou cursos de estudos de gênero, em consonância com os valores conservadores por ele defendidos. Na Polônia, por outro lado, o partido nacionalista Lei e Justiça tentou silenciar acadêmicos cujos projetos desafiavam a narrativa histórica, com foco no Holocausto, de preferência de sua base política. 

Entretanto, o caso mais emblemático de violação da autonomia acadêmica pela extrema direita é aquele que ganhou os holofotes da mídia ocidental ao longo das últimas semanas: o embate entre o presidente dos EUA, Donald Trump, e algumas das mais renomadas universidades do mundo, com destaque à Harvard e à Columbia.

Os ataques de Donald Trump às Universidades

A origem do embate: as repercussões da guerra no Oriente Médio

No dia 7 de Outubro de 2023, um atentado orquestrado pelo grupo terrorista palestino Hamas deu início à guerra que, há quase 2 anos, vem sendo travada no território da faixa de Gaza. O início do conflito foi marcado pelo rápido e incondicional apoio dos Estados Unidos a Israel: ainda sob administração presidencial do democrata Joe Biden, os norte-americanos aprofundaram uma série de apoios militares e financeiros ao governo de Benjamin Netanyahu, envolvendo o envio de armamentos e tecnologia militar, o apoio diplomático na ONU, entre outras medidas. 

Com o passar do tempo, entretanto, as relações do governo Biden com Netanyahu tornaram-se cada vez mais polêmicas: o premiê israelense vem sendo acusado de cometer crimes de guerra e de promover genocídio e limpeza étnica contra o povo palestino. Dezenas de milhares de civis palestinos, muitos destes mulheres e crianças, já tiveram suas vidas tomadas pelo conflito. Além disso, a violência indiscriminada do exército israelense já é mal vista até mesmo por diversos setores da comunidade judaica internacional, a qual teme pela demora no resgate dos reféns sequestrados nos ataques de 7 de Outubro de 2023. 

Na época, as mortes na Faixa de Gaza alcançavam o assustador patamar de mais de 34 mil vítimas. Atualmente, pouco mais de um ano depois, estimativas de um recente estudo do The Economist indicam que essa cifra pode ultrapassar a casa dos 100 mil.

As repercussões negativas acerca do conflito árabe-israelense não tardaram a surtir efeitos no território norte-americano. Diversas universidades tiveram seus campus tomados, ao longo de 2024, pelos movimentos estudantis, os quais mobilizaram-se conjuntamente para pressionar o governo Biden, o qual, na visão dos manifestantes, era cúmplice da conduta violenta de Benjamin Netanyahu em Gaza. 

Por meio de passeatas, acampamentos e protestos, os estudantes reivindicavam o fim do apoio do governo norte-americano à ocupação dos territórios palestinos. Além disso, a pressão política dirigia-se também às próprias lideranças das universidades: os manifestantes pediam às reitorias um corte de laços com Israel e também com empresas que tornavam viável a guerra, como por exemplo as fabricantes de armas.

A Columbia University, em Nova Iorque, foi o principal palco dessas agitações. Entretanto, outras universidades de ponta também se destacaram, como Yale, NYU, Johns Hopkins e Harvard.

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Acampamento do movimento estudantil na Columbia University, em Nova Iorque, 2024. Fonte: Reuters
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Manifestação pró-palestina na New York University (NYU) em 2024. Fonte: CNN Brasil

Em reação, Joe Biden e Benjamin Netanyahu condenaram as manifestações conjuntamente, classificando-as como “antissemitas”. Entre os estudantes judeus dessas universidades, alguns afirmaram não sentirem-se seguros, ao ponto que outros participaram e apoiaram ativamente as mobilizações. Os protestos, entretanto, ocorreram, em sua maioria, de forma pacífica. Em resposta às declarações de Biden e Netanyahu, líderes estudantis negaram publicamente o suposto carater antissemita do movimento, reafirmando a rejeição a qualquer tipo de discriminação a partir de críticas a “pessoas exaltadas que não nos representam”.

As respostas às agitações estudantis, entretanto, não se resumiram ao repúdio verbal: diversos protestos foram dispersados pelas forças policiais, e as reitorias universitárias dedicaram-se ativamente à negociação com os estudantes, em busca do fim mais rápido possível para as manifestações. Esse processo, entretanto, ocorreu de maneira polêmica: professores universitários da Columbia, por exemplo, criticaram a universidade nova iorquina pela maneira de lidar com os protestos, através do apelo à intervenção policial que contrasta com a liberdade de expressão característica de sociedades democráticas. 

Após meses de agitação, a onda de protestos enfim chegou ao fim, mas seus efeitos estavam distantes de um cessar. Durante a campanha eleitoral norte-americana de 2024, da qual Donald Trump saiu vitorioso perante a candidata democrata Kamala Harris, o tema das universidades e da guerra em Gaza destacou-se novamente. Trump, como promessa de campanha, prometeu recuperar as instituições educacionais americanas daquilo que ele chamava de “esquerda radical”. Com o início de seu mandato em 2025, tais propostas não tardaram a reaparecer e, já no começo do ano, Trump iniciou uma sequência de ataques à autonomia de muitas das mais tradicionais universidades dos EUA.

Início do mandato de Trump e o embate com as universidades

Os Estados Unidos são uma das maiores (se não, a maior) potências universitárias do planeta: de acordo com o QS World University Rankings, 25 das 100 melhores universidades do mundo são norte-americanas (para fins de comparação, a USP é a única brasileira nessa lista, ocupando a 92a posição). Tais instituições são um grande impulsor do poderio econômico e militar internacional dos EUA, uma vez que atendem à enorme demanda do país e do mundo por inovações tecnológicas e descobertas científicas. 

O descaso de Donald Trump com a ciência, entretanto, é tudo menos uma novidade. O republicano, desde o início de seu segundo mandato, já assustou a comunidade acadêmica de seu país com as críticas, ameaças e ataques dispensados à OMS, órgão internacional de grande importância ao progresso científico no ramo da medicina. Tais preocupações, entretanto, viriam a crescer novamente com uma onda de ataques à autonomia universitária inaugurada nos últimos meses pelo republicano. 

De início, o governo Trump ordenou que fossem feitas investigações em cerca de 100 instituições de ensino superior acusadas de discrminação e antissemitismo. Além disso, muitas dessas passaram a ser alvos de punições financeiras. 

À Princeton University, por exemplo, foi imposta a suspensão de bolsas de pesquisa no valor de 210 milhões de dólares. De acordo com especialistas, a medida pode afetar projetos da universidade em parceria com a Nasa e o Departamento de Defesa. 

À Johns Hopkins University, por outro lado, foi revogado um montante de financiamento na casa dos 800 milhões de dólares, o que resultou na demissão de mais de 2.000 funcionários. Como justificativa, Trump apontou que a instituição deveria rever sua postura em relação aos protestos em seu campus, exigindo o combate ao antissemitismo e a movimentos supostamente ligados ao Hamas. 

Trump suspendeutambém um financiamento de 175 milhões de dólares à University of Pennsylvania, como reação às suas políticas esportivas de inclusão para atletas transgêneros.

Trump e a Columbia University: pressões financeiras e acusações de perseguição política

As punições de maior repercussão, todavia, foram direcionadas à Columbia University, o epicentro das agitações estudantis de 2024. O republicano anunciou a retirada de 400 milhões de dólares em financiamento federal da universidade, sob a alegação de que a universidade tolerava o antissemitismo no campus. Para além de uma mera retaliação aos protestos do ano anterior, tal acusação serviu a Trump como pretexto para exigir da Columbia uma série de reformas institucionais. Primeiramente, foi solicitado que a universidade endurecesse as regras para protestos em seus campi a partir, por exemplo, da contratação de oficiais da segurança com poderes de prisão. Em segundo lugar, exigiu-se uma maior vigilância sobre departamentos de estudos sobre o Oriente Médio. 

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Columbia University, campus de Nova Iorque. Fonte: CNN Brasil

As pressões financeiras surtiram efeito: após o congelamento do financiamento, a Columbia University cedeu às exigências de Donald Trump, optando por obedecer às ordens do republicano. O congelamento dos recursos, portanto, veio a ser revogado. Além disso, foi anunciado que a universidade nomearia um novo administrador sênior, voltado a garantir o equilíbrio nos estudos dos campi. A abdicação da autonomia universitária em nome dos financiamentos, é claro, gerou revolta em setores do corpo docente da universidade. Novas manifestações foram convocadas por alunos e ex-alunos inconformados com a postura da universidade perante as ameaças do governo.

Além disso, ganhou destaque mundial o caso de Mahmoud Khalil, ex-estudante de pós-graduação na Columbia que, de acordo com os movimentos estudantis locais, teria sido vítima de perseguição política após protagonizar as manifestações pró-palestina de 2024. Khalil, acusado por Trump de ser um “estudante radical a favor do Hamas”, é um refugiado palestino criado na Síria que, apesar de possuir o Green Card (cartão de residência permanente) – que veio posteriormente a ser revogado – e de ser casado com uma norte-americana, foi detido por agentes do Departamento de Imigração e Alfândega (ICE) dos EUA, sob a alegação de que seu visto de estudante teria sido revogado. 

A prisão do palestino gerou indignação entre grupos de Direitos Humanos e a comunidade acadêmica dos EUA, uma vez que a deportação de estudantes por revogação de cartões de residência e vistos é legítima apenas quando o indivíduo apresenta ligação com atividades criminosas, o que não se refletia nos antecedentes de Khalil. Além disso, o estudante chegou a ser temporariamente suspenso pela universidade, mas, posteriormente, conseguiu concluir sua pós graduação.

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Mahmoud Khalil discursando durante uma coletiva de imprensa organizada nos protestos pró-palestina em 2024, na Columbia University. Fonte: Rolling Stone

Trump e a Harvard: autonomia universitária acima de tudo

Outra importante instituição que não ficou de fora das ameaças de Donald Trump foi Harvard, a mais prestigiada e tradicional escola de ensino superior dos Estados Unidos. O governo norte-americano impôs sobre esta um congelamento de mais de 2,2 bilhões de dólares (mais do que o dobro do orçamento anual total da USP, a melhor universidade do Brasil e da América Latina), além de ameaçar a retirada de sua isenção de impostos de renda federal. Para completar, em sua rede social Truth Social, Trump fez um post associando-a ao terrorismo.

Tal manobra política, entretanto, logo teve suas intenções reveladas: foi enviada a Harvard uma carta com exigências que, de acordo com o republicano, visavam o “combate ao antissemitismo”, incluindo mudanças nas contratações, admissões e no ensino. Entre as reivindicações, tinha-se a exigência de denúncias ao governo federal de alunos hostis aos “valores americanos”, da garantia de que cada departamento tivesse “diversidade de pontos de vista” e da contratação de entidades externas que, sob a aprovação do governo federal, auditariariam os programas e departamentos “que mais alimentam o assédio antissemita”. 

Além disso, o presidente norte-americano exigiu o fim de programas de inclusão e diversidade na instituição, através de amplas reformas na administração, políticas de admissão e contratação “baseadas no mérito” e auditorias com estudantes, professores e dirigentes. Em outras palavras, Trump buscou, sob o pretexto de proteger os estudantes judeus, interferir no principal elemento da autonomia universitária: a liberdade de expressão dos alunos, professores e pesquisadores. 

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Campus da Harvard em Cambridge, Massachusetts. Fonte: Harvard University, instagram

Em resposta às exigências de Trump, Alan Garber, presidente da universidade, enviou uma “carta de resistência” à Casa Branca, onde afirmou que “embora algumas das demandas delineadas pelo governo visem combater o antissemitismo, a maioria representa uma regulamentação governamental direta das ‘condições intelectuais’ em Harvard”. Ao longo da carta, Garber referiu-se às medidas autoritárias de Trump como uma clara violação à primeira emenda da constituição norte-americana, a qual preza pela Liberdade de Expressão.

A universidade mais famosa do mundo, portanto, tornou-se a primeira, no segundo mandato de Trump, a recusar-se a cumprir as exigências do republicano quanto à redução da autonomia acadêmica. Tal decisão teve grande impacto simbólico: diferentemente de Columbia, por exemplo, Harvard optara pela manutenção da liberdade de seus membros acima do financiamento governamental.

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Manifestação estudantil em Harvard contrária aos ataques de Trump. Fonte: Reuters

Em resposta à resistência de Harvard, Trump passou a impedi-la de matricular estudantes estrangeiros, os quais, atualmente, representam uma parcela de 27% dos alunos da instituição. A ação, entretanto, veio a ser bloqueada temporariamente por uma juíza, a qual classificou os atos do presidente como “inconstitucionais”. Para legitimar tal medida, Trump, além de reafirmar as acusações de fomento ao antissemitismo em Harvard, falou de uma suposta coordenação de seu campus com o Partido Comunista Chinês, tendo em vista que 20% dos matriculados internacionais na instituição advém do gigante asiático. As acusações, entretanto, não se acompanharam de qualquer prova concreta.

Os significados da violação da autonomia acadêmica

A redução da autonomia das Universidades norte-americanas, como já contemplado neste artigo, é um reflexo da crise sob a qual a democracia, não só nos EUA como em todo o mundo, se encontra. Trump, ao reduzir a independência dessas instituições, adquire novos instrumentos para sufocar a oposição ao seu governo e, portanto, aprofunda ainda mais a crise política que sua mera eleição representa. Entretanto, os impactos à comunidade acadêmica vão muito além disso. 

A redução orçamentária de Harvard, já no curto prazo, possivelmente apresentará consequências econômicas negativas aos EUA. Todo um ecossistema de inovação tecnológica e produção científica que alimenta as empresas norte-americanas dispõe agora de recursos reduzidos. Além disso, as constantes ameaças do republicano aos estudantes estrangeiros das grandes universidades norte-americanas farão com que docentes de outros países “pensem duas vezes” antes de buscar por oportunidades profissionais no país.

Uma outra potencial consequência dos ataques de Trump pode ser compreendida ao remontar-se ao passado. Na Alemanha Nazista, a “Lei para a restauração do serviço civil profissional” de 1933 proibiu o emprego público de pessoas de origem não ariana e, portanto, foi responsável pela expulsão de milhares de acadêmicos das universidades estatais alemãs (na época, 25% dos cargos acadêmicos no país eram ocupados por judeus). Além desta medida, o governo nazista fomentou ativamente a perseguição de docentes contrários ao regime, a modificação dos currículos e a queima de livros escritos por não alemães. 

Logo, tal qual os atuais governos populistas, Hitler protagonizou uma das maiores ondas de ataque à autonomia universitária. Tais medidas, entretanto, geraram um efeito colateral indesejado ao Führer: a fuga em massa de cérebros. O antiintelectualismo de Hitler, portanto, foi responsável por tirar da Alemanha alguns dos mais brilhantes nomes da ciência do século XX, como os físicos Erwin Schrödinger e Max Born ou o bioquímico Hans Krebs. O mais célebre de todos, porém, foi o criador da teoria da relatividade, Albert Einstein.

Acredita-se que, caso o governo Trump continue com suas políticas de violação da autonomia universitária, um processo semelhante, provavelmente em menores proporções, pode aprofundar a crise nas academias norte-americanas. Mentes tão brilhantes como o próprio Albert Einstein, a partir de então, podem sentir-se inclinados a mover seus estudos a outros países onde a crise da democracia não chegou ao nível estadounidense.

Fontes:

https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/article/university-student-groups-in-nazi-germany

https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/the-role-of-academics-and-teachers – 

https://cienciahoje.org.br/a-fuga-de-cerebros-da-alemanha-nazista/

https://www.infomoney.com.br/colunistas/convidados/como-movimentos-erraticos-de-trump-contra-ue-e-harvard-podem-sacrificar-o-dominio-do-dolar/

https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2025/05/30/quais-sao-as-revistas-cientificas-na-mira-do-governo-trump.htm

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https://g1.globo.com/mundo/noticia/2025/03/22/universidade-de-columbia-demandas-de-trump-investimento-cortado-por-alegacoes-de-antissemitismo.ghtml 

https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4gd95k65kro

https://g1.globo.com/educacao/noticia/2025/04/04/entenda-a-ofensiva-de-trump-contra-universidades-de-ponta.ghtml

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https://www.dw.com/pt-br/entenda-a-ofensiva-de-trump-contra-universidades-de-ponta/a-72121320

https://sites.usp.br/revistabalburdia/universidade-sob-ataque-a-nova-onda-da-direita-brasileira/ 

https://ufmg.br/comunicacao/noticias/autonomia-universitaria-vive-crise-mundo-afora

https://www.dw.com/pt-br/milei-e-bolsonaro-o-desprezo-pelas-universidades-p%C3%BAblicas/a-68977139

https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2025/05/23/harvard-processa-trump-por-vetar-estudantes-estrangeiros.htmhttps://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia-brasil/movimento-estudantil-o-foco-da-resistencia-ao-regime-militar-no-brasil.htm

https://ufmg.br/comunicacao/noticias/autonomia-e-elemento-estruturante-do-conceito-de-universidade

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