Câmara dos EUA aprova tardiamente pacote de ajuda à Ucrânia
Escrito por Lucas Philippini e Rafael Khouri
Here’s the Deal, folks.
Washington-DC, 20 de Abril. A Câmara dos Representantes dos Estados Unidos aprova, com 311 votos a favor e 112 contrários, um fundo multibilionário em ajuda militar para a Ucrânia, como parte de um pacote maior, o “Ukraine Supplemental Security Appropriations Act, 2024”, da ordem de US$90bi, que também contempla Israel, Gaza e o Indo-Pacífico. Congressistas americanos tremulam bandeiras ucranianas. O clima de festa encerra meses de impasses que adiaram a aprovação do pacote.
Dos quase US$61bi destinados somente à Ucrânia, cerca de US$23bi serão investidos em reabastecer os estoques de armas e munições dos próprios Estados Unidos, uma vez que Washington envia a Kyiv equipamentos militares que já possuem armazenados. Outros US$14bi serão alocados para o “Ukraine Security Assistance Initiative”, um fundo do Pentágono, o Departamento de Defesa americano, que compra armas diretamente do complexo bélico-industrial nacional ou de terceiros para o esforço de guerra ucraniano. O restante do pacote é reservado a sustentar operações militares dos EUA na Europa Oriental e a ajudar economicamente o governo ucraniano na forma de empréstimos, que podem (e muito provavelmente, serão) perdoados.
O presidente Biden reforçou que, dessa forma, “enquanto essa lei envia equipamento militar à Ucrânia, ela gasta o dinheiro bem aqui, nos Estados Unidos da América, em lugares como o Arizona, onde os mísseis Patriot são produzidos, no Alabama, onde mísseis Javelin são produzidos e na Pensilvânia, Ohio e Texas, onde munições de artilharia são feitas”, referenciando armas norte-americanas que constituem, desde fevereiro de 2022, a espinha-dorsal da resistência ucraniana, dependente desse tipo de ajuda militar e financeira estrangeira, para fazer frente à invasão russa.
Conjuntamente, US$26,4bi foram aprovados para prestar ajuda militar a Israel frente ao “Irã e seus proxies” – como afirma a peça legislativa – e fornecer assistência humanitária a Gaza. O montante restante se destina ao Indo-Pacífico, onde será empregado tanto para aprimorar a infraestrutura militar submarina norte-americana quanto na forma de suporte militar a Taiwan e demais aliados na região – buscando “conter a China Comunista”.
Além da esfera militar, o projeto de lei também sanciona a provável censura do TikTok, rede social associada à empresa chinesa ByteDance. De acordo com a lei aprovada em abril, para se manter ativo em território americano, a empresa deve cortar relações com a ByteDance, e se associar a uma empresa com sede nos EUA. A medida é recebida como uma tentativa de censurar o aplicativo chinês, já que dificilmente a empresa chinesa abrirá mão do controle da rede social.
Algo de novo no front
A aguardada aprovação do pacote na Câmara e no Senado e a subsequente sanção presidencial chegam em um momento crucial da guerra na Ucrânia.
Ainda no começo do mês de abril, em entrevista ao grupo “United24”, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, afirmou que seu país “perderia a guerra” sem o apoio militar norte-americano, advertindo que “milhões poderiam morrer” com a prolongação e, potencialmente, com a expansão do conflito.
Desde o final do segundo semestre de 2022, quando as contraofensivas ucranianas expulsaram forças russas dos arredores de Kharkiv – a segunda maior cidade do país – e de Kherson – a poucas dezenas de quilômetros da Criméia -, a linha de frente de mais de 1.000km tem estado relativamente estática.
No entanto, a Rússia de Putin ainda ocupa ⅕ do território ucraniano reconhecido internacionalmente, obtendo, no último ano, vitórias terrestres geograficamente muito limitadas, mas taticamente significativas, contra o exército ucraniano. Gozando de superioridade numérica em soldados e armas, e enfrentando um inimigo enfraquecido com a diminuição no fluxo de armas vindas do Ocidente, os russos garantiram que a contraofensiva ucraniana de junho de 2023 não atingisse seu objetivo de cortar a conexão terrestre da Rússia com a península da Criméia.
No começo de 2024, o exército russo retomou a iniciativa e forçou, a pesadas baixas, a expulsão dos ucranianos da cidade de Avdiivka, que tinha estado na linha de frente desde o início da guerra no Donbas, em 2014. A sua queda foi atribuída, por Biden e Zelensky, à relutância do Congresso em levar adiante o pacote de ajuda militar, enquanto soldados ucranianos enfrentavam uma severa escassez de munição, o que era necessário para conter essa ofensiva russa no leste do país.
Nas últimas semanas, a Rússia tem lançado ataques por toda a linha de frente visando identificar pontos enfraquecidos para potencialmente explorá-los, enquanto intensifica bombardeios aéreos contra a infraestrutura civil ucraniana e densos centros populacionais, que carecem de defesas antiaéreas.
Sendo os EUA o maior patrocinador dos esforços de defesa ucranianos, o resultado favorável ao projeto de lei na Câmara dos Representantes foi muito bem-recebido em Kyiv, em especial frente aos reveses na frente de batalha nos últimos meses. Zelensky publicou um vídeo em suas redes sociais, onde agradeceu nominalmente o líder dos democratas na Câmara, Hakeem Jeffries, e o republicano Mike Johnson, presidente da Casa, por “manter a história no caminho certo”.
O pacote orçado em dezenas de bilhões de dólares – o maior do seu tipo até o momento, e que se soma a outros US$115bi já destinados à Ucrânia desde 2022 – seria aprovado por uma esmagadora maioria no Senado norte-americano e rapidamente sancionado pelo presidente Joe Biden no dia 24 de abril. O mandatário prometeu que o envio de armas começaria logo “nas próximas horas”.
Dentre as mais esperadas pela Ucrânia de Zelensky estão as defesas antiaéreas, como as caras e eficientes baterias de mísseis Patriot, destinadas tanto a apoiar as tropas na linha de frente quanto a proteger cidades e a infraestrutura civil ucraniana das barragens de drones e mísseis russos. De acordo com o governo ucraniano, mais de 1,2 mil mísseis, 1,5 mil drones (incluindo os Shahed-136, de fabricação iraniana) e 8,5 mil bombas foram lançados contra o país apenas neste ano.
Espera-se, também, o envio de mais sistemas móveis de artilharia, os HIMARS; de mísseis de longo alcance, capazes de atacar dentro de território russo e da Criméia ocupada, os ATACMS; de veículos blindados, como os Bradley; e, especialmente, de munições de 155mm, demandadas aos montes para alimentar a faminta artilharia ucraniana, que consome, de acordo com o CSIS, cerca de 100.000 explosivos desse tipo por mês.
A peça legislativa abre uma brecha, inclusive, para que US$5bi em ativos do Banco Central Russo, congelados pelos Estados Unidos ainda em 2022 como retaliação pela invasão da Ucrânia, sejam confiscados e entregues ao governo ucraniano como forma de compensação pela destruição causada pela guerra. Jake Sullivan, conselheiro de Segurança Nacional da administração Biden, espera levar o tópico para discussão na próxima reunião do G7. Caso o exemplo seja seguido pelos aliados europeus, até US$300bi podem ser alocados para o fundo de reconstrução da Ucrânia.
Uma Casa dividida
A tramitação do pacote é considerada tardia, e foi acompanhada de perto e com preocupação pelos aliados americanos em particular no continente europeu, que observavam a deterioração da situação militar na Ucrânia. O atraso de quase seis meses se deu pelo impasse entre congressistas democratas, favoráveis à aprovação do pacote, e republicanos, que vivem um racha sobre a ordem de prioridades da sociedade americana.
Foi apenas no final do último mês que o presidente da Câmara dos Representantes, o republicano do estado da Louisiana, Mike Johnson, deu sinal verde para a votação do pacote enviado pelo executivo e que já havia sido aprovado com folga no Senado controlado pelos democratas. Johnson, que sucedeu o colega de partido Kevin McCarthy depois da sua expulsão do cargo por radicais trumpistas, vinha adotando uma postura cética à continuação do apoio norte-americano à Ucrânia, em parte evitando se indispor com essa ala, temendo que uma rebelião similar fosse lançada contra ele.
Por outro lado, Johnson vinha sendo alvo de forte pressão internacional (dos próprios ucranianos e de aliados de Washington) e doméstica (da Casa Branca, dos democratas no Capitólio e de republicanos tradicionais) para que colocasse o projeto de lei em pauta na Câmara o mais rapidamente possível.
A decisão de finalmente colocá-lo em votação, no entanto, seria atribuída, pelo speaker – que é reconhecidamente um ávido cristão batista -, à reflexão e oração, levando a um giro de 180° na postura que vinha adotando em relação ao conflito na Ucrânia. Em discurso concedido logo após a votação, o congressista disse que fez o que acreditou ser “a coisa certa”, apelando para o julgamento da história sobre a decisão e acrescentando que não poderia “operar por medo” de uma moção que viesse a tirá-lo do cargo.
Imediatamente após a aprovação por 311 a 112 – sendo todos os contrários republicanos – lideranças na extrema-direita do partido voltaram a ameaçar a posição de Johnson em retaliação pelo apoio dado ao financiamento à Ucrânia.
Isolacionismo às avessas
Comumente descritos como isolacionistas, pouco interessados em financiar conflitos internacionais em detrimento de uma agência de questões internas do país, os republicanos trumpistas, na verdade, são seletivos quanto ao seu apoio partidário em conflitos internacionais. Atualmente, diferentes alas do partido Republicano seguem visões distintas sobre a política externa norte-americana.
Enquanto republicanos típicos defendem um apoio contundente à Ucrânia, líderes da ala radical trumpista, como Marjorie Taylor Greene, buscam se afastar do conflito. Para os republicanos mais ligados a Trump, a condenação das ações de Putin na guerra não é automática. Visto como referência no campo do conservadorismo global, membros republicanos do Congresso e, mais importante, eleitores republicanos enxergam semelhanças nos discursos de Donald Trump e Vladimir Putin, como a defesa dos valores conservadores da família e a repressão do movimento LGBT+. Trumpistas também se usam da crise política sobre a entrada irregular de imigrantes latinos nas fronteiras do sul dos Estados Unidos como pretexto para priorizar esforços do Congresso em apoio de outras empreitadas, que não a guerra de Putin.
Paradoxalmente, trumpistas reforçam o apoio a Israel, não apresentando a mesma relutância em apoiar o país. O apoio republicano a Netanyahu foi mais naturalizado, já que a defesa de Israel se alinha aos valores cultivados por eleitores – em especial o voto evangélico – e congressistas republicanos, com exceção de 21 parlamentares que também enxergam no conflito a necessidade de distanciamento dos Estados Unidos, e votaram contra o envio de ajuda militar ao principal aliado no Oriente Médio.
Por outro lado, a política externa democrata, e a adotada pelo presidente Joe Biden, tem sido favorável ao envolvimento americano mais acentuado em conflitos internacionais. Para os democratas, a segurança dos Estados Unidos só será alcançada por meio da defesa e cooperação com aliados ideologicamente próximos aos americanos, como representantes da democracia liberal. Apoiar a Ucrânia militarmente é, portanto, uma etapa fundamental para a segurança norte-americana e de seus interesses.
Trump First
Fora democratas e republicanos, é necessário falar do interesse de Donald Trump, líder republicano e claro candidato alternativo a Biden, em mostrar força e controle sobre o debate pela aprovação do projeto de lei. O fim do impasse no Congresso só ocorreu após um encontro entre Trump e David Cameron, secretário de Relações Exteriores britânico, o que foi visto como um aceno de aliados americanos em favor da aprovação do pacote de ajuda militar, tão essencial para a segurança regional europeia. Para Trump, o encontro apresentou saldo positivo, já que o fortaleceu como figura dominante no partido e na esfera política americana como um todo. Dessa forma, podemos dizer que, por mais fragmentada que a bancada republicana possa parecer, a imagem de Trump como líder se mantém.
Referências
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https://www.csis.org/analysis/what-ukraine-aid-package-and-what-does-it-mean-future-war
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