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Cartografia: dos primórdios à contemporaneidade

Cartografia: dos primórdios à contemporaneidade

Escrito por: Maria Luísa Almeida e Rafael Paoliello.

No dia 9 de abril deste ano, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) lançou uma nova versão do Atlas Geográfico Escolar. Contando com mais de 200 diferentes mapas e com o intuito educacional, são analisados aspectos físicos, como vegetação, clima, relevo, solo e políticos, como economia, indicadores sociais, regimes e outros a partir da cartografia.

Contudo, um detalhe específico fomentou discussões e dividiu opiniões acerca do atlas. Um dentre todos os mapas foi feito com o Brasil no centro do mundo, uma representação não usual e diferente do que costuma-se ver aqui.  

Um ponto que se sobressai dos aspectos levantados na discussão é a carga política que um mapa traz.  Assim, é muito evidente que o novo atlas com o Brasil centralizado não é apenas uma ocasionalidade, mas sim uma escolha pensada com o intuito de representar uma ideia, essa que fica mais evidente ao entender o contexto do mapa e quando ele foi feito.

O mapa que viralizou pelas redes sociais conta com 20  países, incluindo o Brasil, representados na cor verde. Esses países são os integrantes do G20, grupo que  reúne as maiores economias do mundo. Os Estados-membros se encontram anualmente para discutir iniciativas econômicas, políticas e sociais. Algo que se destaca é que a próxima dessas reuniões ocorrerá em novembro no Rio de Janeiro. Com isso, o Brasil busca reforçar uma ideia de centralidade nas discussões internacionais em um reposicionamento no cenário global. É dessa forma que o IBGE se posiciona em nota ao dizer que  “o mapa é uma oportunidade de mostrar o país de forma singular em relação a esse grupo de países (o G20) e ao restante do mundo”.

 

Atlas IBGE – Mapa G20

 

Ainda, a mudança da centralidade do mapa também pode ser interpretada com as recentes investidas do sul global na busca por influência na política internacional. Retirar a Europa de uma posição central para colocar um país latino se espelha por exemplo no intuito do BRICS, bloco econômico que vem da aliança de países em desenvolvimento que buscam exercer maior influência no parâmetro global com potências predominantemente do norte global.

Para além disso, tratando da cartografia como uma ferramenta de poder pela qual transparece uma visão de mundo, a partir do atlas é possível entender muito do posicionamento brasileiro com relação a questões internacionais. Nele é possível ver a Palestina reconhecida como um Estado soberano, as Ilhas Malvinas, Geórgias e Sandwich são dadas como território argentino e não inglês, a ilha de Taiwan é tratada como um território chinês e Kosovo como território sérvio, ou seja, suas independências não são reconhecidas. Todos esses posicionamentos são discutidos a nível internacional e o posicionamento apresentado nos mapas se espelha ao já apresentado pelo Itamaraty nos últimos anos. 

 

Cartografia na História

Compreendendo agora o simbolismo que pode ser passado pela cartografia em suas representações, convidamos a um passeio pela história para discutir diferentes relações de poder e visões de mundo expressas em diferentes mapas pelo mundo. A fabricação de mapas demonstra uma ciência muito útil na contemporaneidade e ao longo do tempo a partir do momento em que o ser humano começou a precisar representar o espaço geográfico em que ocupa com a finalidade de controle e compreensão da natureza. Desse modo, além de representar visões de mundo, mapas também são retratos da época em que são feitos, seja pelos materiais utilizados em sua confecção ou pelas técnicas desenvolvidas. 

Começando em um período já avançado na história humana a Tabula Peutingeriana (200 d.C.) disposta em onze seções, esse mapa registra a intrincada rede de estradas que interligava vastas extensões do vasto Império Romano, focando na cidade de Roma como o centro do mundo conhecido da época. Para além de uma representação geográfica para viagens, a Tabula Peutingeriana era um símbolo do poder e da organização do Império demonstrando sua capacidade de mapear e controlar seus vastos territórios.

Tabula Peutingeriana

 

O Mundo Segundo Ptolomeu (150 d.C.) –  A obra magna de Ptolomeu, baseada em observações e teorias matemáticas e astronômicas,  reuniu o maior conhecimento sobre geografia e cartografia até então produzido no mundo greco-romano consolidou a visão geocêntrica do universo, colocando o Império Romano e, por extensão, o Ocidente, no centro do universo, representando regiões da Europa, Norte de África e Ásia.  Ele desenvolveu a ideia de longitudes e latitudes. Essa visão de mundo perdurou por séculos, moldando a cosmovisão e a organização do conhecimento durante a Idade Média. 

Mapa do Mundo, representado na segunda projecção proposta por Ptolomeu (Leinhart Holle, 1482).

 

Al-Idrisi: O Livro do Desbravamento (1154 d.C.) – Este documento é um mapa do mundo árabe que se preocupa em detalhar informações sobre rotas comerciais, climas, produtos e as diversas culturas da região. Pondo sobre análise, demonstra o conhecimento avançado da geografia e matemática do mundo islâmico na época.  O Livro do Desbravamento serviu como uma ponte entre o conhecimento do Oriente e do Ocidente, contribuindo para a expansão do conhecimento geográfico na Europa medieval, sendo crucial na missão dos navegantes europeus dos séculos XV e XVI.

Mapa do Mundo por Al-Idrisi

 

O Mapa-múndi de Hereford (c. 1300) – Esse mapa do mundo medieval que combina a geografia com elementos religiosos, devido à mentalidade permeada pela Igreja Católica na época, foi feito não para navegação, mas como uma obra de arte, contando inclusive com cenas de passagens bíblicas. Ele oferece uma visão de mundo teocêntrica e simbólica, na qual o paraíso se encontra no centro e Jerusalém é a cidade mais importante. O mapa revela a profunda religiosidade da época e a centralidade da fé cristã na visão de mundo medieval. Desse modo, ajuda a legitimar o controle da Igreja sobre a população.

Mapa-múndi de Hereford

 

O Mapa do Mundo Kangnido (1402) – Criado na Coreia durante a dinastia Joseon, este mapa revela a visão de mundo centrada na Ásia, com a Coreia no centro e a Europa designada a uma pequena região no canto superior esquerdo. O Mapa do Mundo Kangnido desafia a visão eurocêntrica dominante que temos da época, oferecendo uma perspectiva alternativa e uma reflexão sobre a importância e centralidade de diferentes continentes e culturas que a europeia na história global. 

Mapa do Mundo Kangnido

 

Martin Waldseemüller: Carta do Mundo (1507) – Este mapa é considerado um marco na história da cartografia, pois é o primeiro a incluir o nome “América”, eternizando o erro de atribuir a descoberta do Novo Mundo a Américo Vespúcio.  A difusão da Carta do Mundo teve um impacto profundo na concepção do mundo na Europa, consolidando a ideia da América como um novo continente a ser explorado e conquistado.

Carta do Mundo

 

Diogo Ribeiro: Carta Universal (1529) – Considerado um dos mapas mais precisos da época, a obra de Ribeiro mapeou a costa brasileira com detalhes impressionantes, impulsionando a colonização portuguesa e facilitando a navegação marítima. A Carta Universal foi um instrumento essencial para a expansão portuguesa na América, fornecendo informações cruciais para os navegadores e exploradores portugueses.

Carta Universal

 

Gerardus Mercator: Mapa do Mundo (1569) – A famosa projeção de Mercator, com seus meridianos retos e linhas de latitude espaçadas uniformemente, facilitou a navegação marítima, permitindo aos navegadores traçar cursos mais precisos. A projeção de Mercator, apesar de seus benefícios práticos, apresenta distorções significativas na proporção dos continentes, favorecendo a Europa e as regiões do Norte em detrimento da África, América do Sul e Ásia. Essa distorção cartográfica gerou críticas e debates ao longo da história, sendo uma ferramenta de legitimação do colonialismo europeu e da visão de mundo eurocêntrica. 

Mapa do Mundo por Mercator

 

Joan Blaeu: Atlas Maior (1662) – Uma obra monumental que compilava o conhecimento cartográfico da época, o Atlas de Blaeu se tornou um símbolo do poder e da riqueza da Europa durante a Era dos Descobrimentos. O Atlas continha mapas detalhados de todos os continentes conhecidos, além de informações sobre costumes, culturas e produtos de diferentes regiões do mundo. Além disso, fomenta uma visão do conhecimento como algo das elites.

Atlas Maior por Joan Blaeu

 

Família Cassini: Mapa da França (1793) – Este projeto ambicioso, que durou mais de 70 anos, mapeou a França com precisão sem precedentes, utilizando técnicas cartográficas inovadoras e triangulando pontos por todo o país. O mapa dos Cassini serviu como base para o planejamento urbano, a cobrança de impostos e a administração do território francês durante a Revolução Francesa e o período napoleônico.

 Mapa da França (1793)

 

Halford Mackinder: “O Eixo Geográfico da História” (1904) –  Este mapa geopolítico propôs a teoria do “Heartland” (coração da terra), defendendo a ideia de que o controle da Eurásia central era crucial para o domínio mundial. A teoria de Mackinder teve um impacto significativo na geopolítica do século XX, influenciando as estratégias militares e as políticas internacionais durante as Guerras Mundiais e a Guerra Fria.

Mapa conforme proposições de Halford Mackinder

 

O decolonialismo na cartografia

 No século XIX, por fim, a projeção de Gall- Peters,– idealizada em 1855 pelo astrônomo James Gall e difundida pelo historiador Arno Peters na década de 70 – é elaborada com o objetivo de desenhar um mapa com proporções continentais mais adequadas às dimensões reais. Diferentemente da projeção de Mercator, traçada sob o contexto das colonizações, a nova projeção ajusta proporções fundamentais, haja vista que a Groenlândia parece ter o mesmo tamanho da África e dos EUA. Parece de um tamanho comparável, embora saibamos que isso não é uma verdade absoluta. A África é 14 vezes maior do que a Groenlândia. Além disso, no mapa de Mercator, o México é menor que o Alasca, quando na verdade é muito maior. 

 

Tais mudanças são significativas ao passo que, como visto anteriormente, os mapas têm um papel político e representativo intrínseco ao sentimento de pertencimento individual no mundo. Assim, ao redefinir as linhas fronteiriças de acordo com parâmetros mais reais, quem estuda e observa esse mapa sente-se mais bem representado e pode analisar, de fato, o impacto de suas origens. Por isso, a projeção Gall- Peters é cada vez mais aplicada como ferramenta de estudo da cartografia nas escolas e meio acadêmico, de modo a incentivar uma visão decolonial do mundo. 

O decolonialismo, por sua vez, tenta reverter os efeitos e consequências instauradas na ordem social, econômica e política pela colonização, através de práticas, conceitos, pesquisas e estudos que incidam nesse processo histórico. O movimento decolonial nos mapas visa confrontar e transformar as narrativas dominantes e eurocêntricas que há muito tempo influenciaram a cartografia. Ao longo dos séculos, os mapas produzidos pelas potências coloniais refletiram suas próprias perspectivas, interesses e hierarquias, frequentemente relegando ou distorcendo as realidades geográficas e culturais de povos indígenas, comunidades locais e nações não-ocidentais. O decolonialismo cartográfico busca descolonizar o conhecimento geográfico, questionando as fronteiras impostas pelo colonialismo, reintroduzindo nomes e lugares indígenas e reconhecendo a diversidade de vozes e histórias que moldam o mundo. Isso pode incluir a elaboração de mapas alternativos, baseados em cosmovisões indígenas ou em experiências de resistência e luta contra o colonialismo. Além disso, o decolonialismo nos mapas também procura promover uma maior participação e autonomia das comunidades locais na representação e gestão de seus territórios, desafiando, assim, a dominação cartográfica colonial e fomentando uma cartografia mais inclusiva, equitativa e precisa.  

Sob esse ponto de vista, o artista argentino Nicolás García Uriburu (1937- 2016) propôs um novo olhar das Américas em sua obra “Ni arriba ni abajo”.  

 

Já o artista plástico uruguaio Joaquín Torres Garcia (1935) decidiu repensar as relações de poder e dependência estabelecidas como parâmetro de relacionamento entre América Latina e América do Norte. Sabe-se que a convencionalidade dos mapas privilegia o hemisfério norte, logo, ao representar América Latina de maneira invertida (para o padrão convencional), referência a falta de uma autonomia. 

Nesse sentido, a obra “El norte es el Sur”, tem como objetivo questionar as perspectivas com que foram estabelecidas o Norte como posição central e superior do mundo, sendo que cientificamente, não há razão para isso. Espera-se, dessa forma, que novos olhares, antagônicos a visão eurocêntrica, incidam na América, para assim compreender e criar diversas visões de representação do espaço geográfico. A representação do mundo de maneira invertida sugere a quebra da visão clássica eurocêntrica dos mapas e a análise crítica de suas influências no pensamento geopolítico global. 

 

E hoje? Quem desenha os Mapas? 

Sabe-se que, na atualidade, não cabe mais a capacidade manual humana o traço dos mapas. A tecnologia moderna é capaz de analisar a forma terrestre não mais com uma representação bidimensional, mas sim tridimensional. Hoje, as imagens de satélites, os softwares e equipamentos de geoprocessamento e os instrumentos como o GPS são fundamentais para a construção cartográfica.  

Entre as tecnologias desenvolvidas durante as guerras mundiais para o avanço da espionagem e da análise do território inimigo para o desenvolvimento de estratégias de combate, a produção da aerogradiometria para a captura de imagens da superfície terrestre por meio de uma câmera acoplada a uma aeronave ou balão é o estopim inicial para a cartografia moderna. 

As tecnologias cartográficas contemporâneas representam um marco significativo na forma como entendemos, criamos e interagimos com mapas. Com o advento de sistemas de informação geográfica (SIG), um conjunto de equipamentos de softwares foi possibilitada a  coleta e processamento de dados e imagens, podendo ter diversas finalidades de acordo com o usuário, como pesquisadores, estudantes, gestores e ONGs. 

O sensoriamento remoto, por sua vez, tornou os mapas mais do que simples representações estáticas do espaço; agora, são dinâmicos, interativos e altamente precisos, de maneira que não somente a captação cada vez mais detalhada de imagens da superfície terrestre ou de parte dela quanto também a coleta de informações diversas da localidade visada, como cobertura vegetal, temperatura da superfície e presença de fumaça ou nuvens.   

A integração de tecnologias de posicionamento global (GPS), essencial no cotidiano moderno, e crowdsourcing permite a coleta e atualização contínua de dados geográficos, enquanto a realidade aumentada (AR) abre novas possibilidades de sobrepor informações virtuais ao ambiente físico. Essas tecnologias, em constante evolução, desempenham um papel crucial em uma variedade de áreas, desde planejamento urbano e gestão ambiental até turismo e navegação, capacitando-nos a explorar e compreender o mundo de maneiras nunca antes imaginadas. 

Esses avanços possibilitam uma representação mais exata e tridimensional do globo, integrando informações provenientes de satélites e veículos aéreos não tripulados. A visualização aprimorada e a habilidade de sobrepor diversas camadas de dados nos mapas promovem uma compreensão mais abrangente dos padrões geoespaciais. 

Contudo, é notório que a manipulação para representar com fidelidade o espaço geográfico coloca em pauta um dilema ético contemporâneo, a questão da privacidade ao utilizar essas tecnologias para coleta e manipulação de dados geoespaciais. É importante considerar a segurança dos dados, especialmente quando se trata de tecnologias como o GPS e o Google Maps. Essas plataformas, embora sejam amplamente utilizadas para navegação e localização, também têm sido alvo de críticas devido ao potencial de violação de privacidade e coleta excessiva de dados dos usuários. O roubo de dados pode ocorrer quando informações pessoais são coletadas e utilizadas sem o consentimento adequado dos usuários, muitas vezes para fins comerciais ou de monitoramento.  

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Bibliografia

https://www.correiobraziliense.com.br/euestudante/educacao-basica/2024/04/6846450-o-brasil-no-centro-do-mapa-mundi-e-a-importancia-do-novo-atlas-do-ibge.html

https://oglobo.globo.com/cultura/noticia/2024/04/21/repercussao-de-mapa-mundi-do-ibge-com-brasil-no-centro-mostra-poder-da-cartografia-diz-especialista.ghtml 

https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2024-04/ibge-lanca-nova-edicao-do-atlas-geografico-escolar 

https://www.g20.org/pt-br?activeAccordion=d1a95c08-9225-45ee-a8f0-9b08e37d097b 

https://atlasescolar.ibge.gov.br/mundo/3014-espaco-economico/blocos-economicos/22058-paises-membros-do-g20.html 

https://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=A3DTDwAAQBAJ&oi=fnd&pg=PT2&dq=hist%C3%B3ria+mapas&ots=UTkbHcbnhS&sig=g-A_rwXMrxe54ElVId0Lmpn6cmw&redir_esc=y#v=onepage&q=hist%C3%B3ria%20mapas&f=false 

https://ojs.uel.br/revistas/uel/index.php/geografia/article/download/13231/14447 

https://www.publico.pt/2018/06/25/ciencia/ensaio/a-geografia-de-ptolomeu-ou-o-texto-obsoleto-mais-importante-de-sempre-1835095 

https://www.brasildefato.com.br/2020/10/07/artigo-existem-outras-formas-de-representar-o-mundo 

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 https://old.crtrj.gov.br/cartografia-contemporanea-entre-sigs-e-gps/ 

https://www.esteio.com.br/en/ 

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