Conflitos no Sahel africano.
O Sahel
Por Maria Isadora Castelli Dias e Marcela Caproni
Do árabe ساحل, Sahel pode ser traduzido como margem ou borda. Quando tratamos de geopolítica, Sahel corresponde a um ‘cinturão’ de países que divide o continente africano em norte e sul.
A singularidade da região se encontra no seu caráter transitório que faz as vezes de uma divisa natural e cultural no continente. A faixa semi-árida de aproximadamente 5700 quilômetros está situada entre o deserto do Saara, ao norte, e as savanas do Sudão, ao sul, além de se estender do Atlântico, ao leste, ao Mar Vermelho, a oeste.
O Sahel é lar de ao menos 12 nações: Gâmbia, Senegal, a parte sul da Mauritânia, o centro do Mali, norte do Burkina Faso, a parte sul da Argélia, Níger, a parte norte da Nigéria e de Camarões, a parte central do Chade, centro e sul do Sudão, o norte do Sudão do Sul e a Eritréia. Eventualmente, são incluídos também a Etiópia e a Somália. Ao norte, observamos uma África majoritariamente islâmica, enquanto ao sul da faixa saheliana, uma população católica mais presente.
Suas características geográficas, com pouca chuva e solo infértil, além de sua posição política estratégica, abarcando diversos grupos étnicos e religiosos, tornam o Sahel uma área de instabilidade, com fácil aderência do crime organizado, de grupos extremistas e também altos índices de fome e miséria.
Cinturão de instabilidade
Em entrevista à BBC News em 2018, o coronel Ignacio Fuente Cobo, do Instituto Espanhol de Estudos Estratégicos (IEEE), define a região como um lugar em crise. Isso porque uma sucessão de fatores na organização política e social saheliana nas últimas duas décadas vêm aumentando tensões pré-existentes.
De 2020 a 2023, militares assumiram o poder no Mali, Burkina Faso, Guiné e Níger, mas tiveram influência direta na sucessão de poder também do Chade e do Níger numa movimentação que deixou a área conhecida como “cinturão do golpe” entre os especialistas. Além disso, o epicentro do jihadismo – ação de grupos extremistas islâmicos – parece ter mudado na última década, se movimentando do Oriente Médio e do sul da Ásia para a região do Sahel. Em 2022, o Sahel africano concentrou 43% das mortes em episódios extremistas, como ataques terroristas, de acordo com a BBC Brasil.
Tamanha oscilação política na área acaba desencadeando um efeito dominó nos países vizinhos fazendo com que uma questão doméstica nunca seja somente isso. Uma tendência nacional, rapidamente se espalha pelo restante da faixa continental como no caso dos golpes militares sucessivos em diversos países. Uma das explicações possíveis para essa particularidade do Sahel, e de outras regiões do continente africano, é a volatilidade das fronteiras entre as nações.
A Partilha da África
Para entendermos parte dos conflitos contemporâneos do continente africano é necessário voltar ao período colonial. Para os fins deste artigo, voltemos ao século XIX para compreender a demarcação de fronteiras e a formação das nações africanas.
O mapa da África como conhecemos hoje foi feito à “régua e lápis” para atender as necessidades comerciais e de produção das potências europeias. Esse processo de colonização contemporâneo se inicia no final do século XIX com a Conferência de Berlim. A série de reuniões, iniciada em 15 de novembro de 1884, reuniu 14 países – Portugal, Bélgica, Holanda, Suécia, Rússia, Itália, França, Grã-Bretanha, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, Alemanha, Império Otomano (atual Turquia) e Império Austro-Húngaro (atuais Áustria e Hungria) – e foi finalizada somente em 26 de fevereiro de 1885.
Em termos oficiais, a conferência foi organizada para o estabelecimento de uma área de livre comércio na região da Bacia do Congo e para intensificar o combate à escravidão no continente africano. No entanto, o verdadeiro tom das discussões foi sobre áreas de influência e o estabelecimento de novas colônias pelas potências, principalmente as recém formadas ou que não participaram da corrida ultra-mar e, portanto, que não possuíam colônias. Foi o caso principalmente da anfitriã Alemanha, da Itália e dos países nórdicos.
A exploração da África vira uma questão de equilíbrio de poder especialmente após a segunda Revolução Industrial que aumenta, consideravelmente, a capacidade de produção das nações industrializadas. À época, a exploração europeia se concentrava majoritariamente no litoral ocidental do continente e pouco adentrava o interior. Essa situação começa a se transformar na segunda metade do século XIX pela alta demanda de matéria prima e fontes de energia da indústria pesada. Em 2023, a Anadolu Agency, agência estatal turca, publicou um artigo sobre a situação paradoxal do Sahel. Apesar da pobreza extrema de sua população atual e a falsa impressão de uma terra arrasada e não aproveitável, a riqueza mineral da região chamou, e ainda chama, atenção internacional. Mali, Burkina Faso e Mauritânia possuem largas escalas de ouro, enquanto Chade, Camarões, Níger e Nigéria concentram petróleo em seus territórios.
A África se torna um território em disputa, e assim como a experiência nas Américas já havia ilustrado, a organização das colônias visa somente uma lógica capital das metrópoles. Dessa forma, as fronteiras são traçadas desconsiderando fatores geográficos, geológicos, distribuição de grupos étnicos e disputas regionais. A arbitrariedade dessa partilha permanece tendo papel central em grande parte dos conflitos atuais no continente. Esse é o caso do Sahel.
Impacto Humanitário de Conflitos e as disputas do Sudão.
Conforme mencionado anteriormente, heranças do passado colonial exploratório contribuem para disputas políticas, econômicas e religiosas na região do Sahel. Nesse cenário, o Sudão não é exceção, abarcando desde abril de 2023 um dos atuais conflitos mais graves em parâmetros humanitários.
Tendo isso em vista, para que se entenda a Guerra-Civil atual do Sudão é necessário delinear o panorama político do país nos últimos anos. Em 2019, um golpe de Estado aplicado pelo exército culminou na deposição do líder autoritário Omar al-Bashir, figura que governou o país por mais de 30 anos, promovendo perseguições a minorias étnicas e censuras pesadas à oposição. Posteriormente, houve uma tentativa de transição política a um regime democrático, interrompida, porém, por um golpe militar que destituiu o primeiro-ministro Abdullah Handok. Esse acontecimento levou a uma disputa de poder entre os dois generais protagonistas do golpe, o líder das forças armadas Sudanesas, Abdel Fattah al-Burhan, e o comandante das forças de apoio rápido paramilitares (RSF), Mohamed Hamdan Dagalo.
Ademais, o estopim para o conflito armado no país foram as desavenças entre Fattah e Dagalo a respeito da integração das Forças de Apoio Rápido (RSF), que contam com cerca de 100 mil soldados, ao exército do país. Nesse contexto, após o líder das Forças Armadas se posicionar contrário a integração, a RSF dispersou forças pelo território nacional, ação lida como uma ameaça por Fattah, dando início a combates diretos em áreas urbanas do país.
Apesar do rumo final do conflito ainda não se expressar claramente, o caráter predominantemente urbano dos combates resulta em graves impactos aos civis da região. Ao todo, a Organização das Nações Unidas estima que há 5,4 milhões de pessoas deslocadas interna e externamente, um dos mais expressivos deslocamentos populacionais do globo. A gravidade do cenário pode estender a crise humanitária a países vizinhos, como República Centro-Africana, Chade, Egito, Etiópia e Sudão do Sul, nações que, no geral, não possuem recursos e infraestrutura para o acolhimento dessas pessoas.
Além disso, por serem frequentes os combates em áreas densamente povoadas, o conflito já resultou na morte de cerca de 15 mil civis, segundo uma estimativa da ONG Armed Conflict Location & Event Data Project (Acled). Na região de Darfur, controlada pela RSF desde julho do ano passado, há acusações de violências étnicas, incluindo ataques a civis, tortura, violações e detenções em massa.
As repercussões da Guerra-Civil no âmbito internacional são diversas, sendo que, se por um lado o destaque de outros conflitos, como a Guerra da Ucrânia e a Guerra em Gaza, contribuem para diminuição da atenção internacional à tragédia do Sudão -o que dificulta o financiamento de ajudas humanitárias-, por outro lado a atuação de outros Estados no financiamento das tropas da RSF ou das Forças Armadas resultam no prolongamento dos combates. Em suma, atualmente, o apoio da Arábia Saudita a Burham e os indícios de colaboração entre as RSF e forças como o grupo russo Wagner e os Emirados Árabes Unidos são fatores agravantes do conflito, na medida que reduzem as perspectivas de um futuro pacífico para a região e amplificam a violência entre os dois grupos.
Desgaste da Influência francesa: conflitos no Mali, Níger e Burkina Faso.
Paralelamente à disputa política do Sudão, a falta de perspectivas de emprego aos jovens, os crescentes índices de violência e os impactos dos avanços das mudanças climáticas são alguns dos fatores que contribuiram para a outra crise enfrentada por países do Sahel: a expansão de grupos extremistas islã, como o Ansarul Islam, ligado à Al Qaeda, e o Estado Islâmico no Sahel (ISS), nas últimas décadas. Com o mencionado avanço de grupos Jihadistas e a carência de recursos nacionais que financiassem tropas para sua contenção, muitos Estados recorreram a auxílios externos.
Isso se deu em países como o Mali, Burkina Faso e o Níger, três territórios com graves conjunturas socioeconômicas resultantes de um violento período de colonização francesa e de processos de independência devastadores. Devido a fragmentação política e fragilidade econômica, as respectivas nações ainda mantinham estreitas relações com a ex-metrópole, a qual exportavam recursos minerais oriundos das principais atividades econômicas da região: o extrativismo. Por isso, com o avanço do Jihadismo, o governo Francês passou a atuar militarmente na região, sob prerrogativa de auxiliar na manutenção das seguranças nacionais.
Todavia, as relações da França com o Mali, Burkina Faso e o Níger alteraram-se drasticamente nos últimos anos. Primeiramente, é relevante demarcar que, apesar do envio de tropas francófonas ser justificado pelo governo do país europeu como ‘auxílio’ a manutenção da ordem, há também fortes interesses da potência nos recursos minerais da região, principalmente nas jazidas de ouro e urânio, das quais a França é o principal destino das exportações.
Assim, constantes acusações da prática de uma política neocolonialista, somadas ao considerável fracasso das tropas no combate extremismo religioso desgastaram a imagem da França na região, gerando inclusive, manifestações das populações contra o imperialismo e a presença de tropas da ex-metrópole na área. Em resumo, observa-se atualmente o afastamento da relação entre as respectivas partes, e o declínio da relevância da França na geopolítica regional do Sahel Ocidental.
O Mali e o Grupo Wagner.
Nos últimos anos, o Mali é alvo de uma das mais graves crises da região, sendo que, com histórico político de regimes autoritários e sucessivos Golpes de Estado, o país atualmente enfrenta um cenário humanitário alarmante. Ao retomar os acontecimentos históricos mais recentes do país, torna-se nítido como tentativas de estabelecimento de regimes democráticos vêm fracassando. Em setembro de 2020, um golpe conduzido por Assimi Goïta e Ismaël Wagué resultou na deposição do então presidente Ibrahim Keïta, e, apesar do comprometimento em restabelecer eleições livres, o processo foi interrompido por um segundo golpe, liderado por Assimi Goïta, em 24 de maio de 2021, resultando no adiamento das eleições para 2025.
Com o predomínio do autoritarismo político, o Mali foi suspenso das principais organizações internacionais da região, incluindo a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (ECOWAS) e a União Africana, o que resultou no isolamento do país em relação aos seus parceiros econômicos regionais, da mesma forma, levou a piora do desenvolvimento da economia e das condições de vida no país.
Paralelamente a isso, eclodiram no país manifestações anti-frança, inseridas no contexto de protestos anti-neocoloniais e em repúdio à atuação das tropas francesas em combate ao jihadismo, considerada por muitos inefetiva, como já apontado anteriormente. Tais protestos, somados ao isolamento regional, levaram à eclosão de novos agentes na região, como o grupo Wagner, empresa militar privada russa, que tem interesses alinhados aos de Vladimir Putin. Por fim, cabe destacar que a presença de tais tropas na região gerou fortes repercussões internacionais, pois o grupo é conhecido por cometer inúmeros desrespeitos às normas do Direito Internacional, com ataques diretos a civis, por exemplo.
Golpes em Burkina Faso.
Em Burkina Faso, o cenário é semelhante, há crescente número de ataques a civis em regiões ao norte do país, principalmente devido ao aumento das áreas de domínio de grupos jihadistas. Além disso, estima-se que, desde 2015, quando os conflitos tiveram início, a violência extrema levou a 2 milhões de deslocados internamente, assim como mais de 20 mil mortos. O quadro torna-se mais preocupante em termos humanitários devido à falta de atenção internacional para a tragédia, fator que motivou o Conselho Norueguês para Refugiados (CNR) a declarar a situação como ‘a atual crise de deslocamento mais negligenciada do globo’, em 2023.
Diante desse panorama, o país também enfrenta graves conflitos no que tange ao domínio do poder central, uma vez que apenas em 2022, ocorreram dois diferentes Golpes Militares no intervalo de 8 meses. Tais tomadas de poder autoritárias surgem sob a prerrogativa da necessidade de uma liderança com novos planos estratégicos no combate à atuação de grupos ligados à al-Qaeda nas regiões do Sahel, principalmente diante do escalonamento de ataques à escolas e aldeias, que, somente em março deste ano, culminaram na morte de mais de 170 pessoas.
O Níger e a questão energética.
O Níger foi o mais recente país do Sahel Africano a romper relações com a França, de modo que as últimas tropas do país europeu deixaram a região em dezembro de 2023. Assim como em outros Estados, a exemplo o Mali e a Burkina Faso, o declínio da influência francesa foi concomitante com um avanço da presença russa, expressa como aliada no combate ao extremismo islã. Contudo, apesar das semelhanças com processos mencionados de outras nações, é relevante ressaltar o processo da mudança na política do país em específico, já que o Níger configurava um importante aliado francês na região.
No dia 26 de julho de 2023, ocorreram massivas manifestações na capital do país, Niamey, nas quais era disseminado um discurso anti-Ocidente contrário ao então presidente Mohamed Bazoum, bem como sua postura pró-frança. Como resultado, um golpe militar destituiu Bazoum da presidência, recebendo apoio, inclusive, do grupo russo Wagner.
Da mesma forma que a crise política alertou os países ocidentais, a relevância do Níger na geopolítica energética representou uma nova preocupação. Isso devido ao fato de que o território engloba uma rica jazida de urânio, minério utilizado na produção de energia nuclear através de seu enriquecimento. endo o 7° maior exportador mundial do recurso, o Níger tinha como principal comprador a França, que, cabe destacar, é líder em utilização dessa matriz energética, com 67% da energia elétrica vinda de fontes nucleares.
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