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Dos campos para o mundo e do mundo para os campos: Esporte e Relações Internacionais no Norte da África

morocco - spain: quarter finals

Dos campos para o mundo e do mundo para os campos: Esporte e Relações Internacionais no Norte da África

|Por Mariana Carmona e Ana Di Nur

Nas semifinais da temporada 23/24 da Copa das Confederações da Confederação
Africana de Futebol (CAF), uma situação curiosa aconteceu. O time argelino USM Alger se
recusou a jogar contra o time marroquino RS Berkane, pois a camisa deste estampava um
mapa de Marrocos que incluía a região disputada do Saara Ocidental, cuja independência é
apoiada pela Argélia. Esse fato que aparenta ser isolado é, na verdade, uma realidade
comum frente à tensão entre esses dois países da região do Magreb, como argumentam
Yousef Bouandel e Mahfoud Amara no artigo intitulado “Esporte e Relações Internacionais
no Norte da África”. Além das rivalidades intra e extra-Magreb, os autores ainda refletem
sobre a ligação entre o esporte e as relações internacionais e as vivências esportivas na
região antes e após a colonização.

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Camisa do RS Berkane para a temporada 23/24 — Foto: Agence France-Presse

No texto, Bouandel e Amara rejeitam a noção de que o esporte seria apolítico. Segundo eles, o esporte seria um espelho da sociedade e só não teria sido suficientemente estudado devido ao viés estadunidense do campo das Relações Internacionais (o qual prioriza o tangível e o mensurável, como aspectos econômicos ou militares). Na realidade, o esporte cumpriria uma série de funções geopolíticas, como: (i) promover unidade nacional e identidade coletiva (a exemplo da Copa do Maghreb, que fortalece a identidade magrebina); (ii) validar regimes interna e externamente ao mostrar sua viabilidade e até superioridade (algo gritante durante a Guerra Fria); (iii) punir comportamentos de outros países (vide o banimento da Rússia das Olimpíadas após sua invasão da Ucrânia); e (iv) amenizar tensões entre países (como ocorreu quando as duas Coreias desfilaram sob uma única bandeira nas Olimpíadas). Dessa maneira, os autores buscam reduzir essa lamentável lacuna acadêmica e analisam a construção identitária por meio da atividade esportiva em países do Norte da África.
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Em mais de uma edição das Olimpíadas de Inverno, as duas Coreias desfilaram sob uma única bandeira em uma rara mostra de união.

Antes de comentar o cerne do artigo de fato, é necessário contextualizar histórica e politicamente a região do Magreb, onde se encontram, na interpretação adotada pelos autores, Argélia, Marrocos e Tunísia. Esses países, como tantos outros no continente africano, compartilham a mesma história de presença colonial francesa, contudo, em diferentes níveis. Enquanto a Tunísia e o Marrocos foram designados como protetorados franceses, a Argélia foi anexada como uma parte do território francês, o que, segundo o artigo, tornou a presença francesa e o processo de independência na Argélia mais violento. Isto, segundo os autores, também contribuiu para a postura e para as divergências entre as políticas internas e externas nas pós-independências argelina, marroquina e tunisiana. 

Nesse contexto, os autores caracterizam o que eles entendem como as bases de posicionamentos de relações internacionais nesses países. A Argélia pós-independência passa a adotar a chamada “política de não-alinhamento” durante a Guerra Fria e a endossar a perspectiva terceiro-mundista no cenário internacional. A Tunísia, por outro lado, queria se aproximar da estética e da organização ocidentalizada dos países europeus mediterrâneos. Marrocos seguia uma matriz similar e almejava se aproximar dos países da Europa Ocidental. A aplicação das ideologias e as consequências delas são discutidas mais profundamente em outros pontos do artigo, a serem tratados posteriormente. 

Conforme o artigo, o esporte chegou ao Magreb como parte da referida missão civilizatória francesa. De início, essas atividades eram restritas aos colonos ou à elite urbana que estudava nas escolas coloniais e, quando atletas africanos se destacavam, eles eram usados para melhorar a performance da França em competições internacionais e servir como prova do sucesso da missão civilizatória desta. No entanto, há exemplos da cooptação dessas práticas por parte dos africanos, como a formação de clubes árabes e judeus (em oposição a europeus) ou de seleções nacionais como forma de ativismo pela independência. Assim, é possível observar que essa antiga ferramenta de controle e aculturação se tornou uma forma de promover nacionalismos africanos.

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O futebolista Mustapha Zitouni fazia parte da seleção francesa, mas a deixou em prol da seleção argelina, montada antes mesmo de o país obter sua independência.

No pós-independência, conflitos de interesse começaram a surgir entre os recém-formados países do Magreb. Um dos principais deles, nessa conjuntura, foi uma disputa territorial entre Marrocos e Argélia, em que este queria manter suas fronteiras como foram traçadas durante o processo de colonização e aquele gostaria de ocupar uma região que pertencia ao território argelino, conflito que foi nomeado “Guerra das Areias”. Alguns estudiosos argumentam que esse impasse foi um dos pontos de gatilho para o início de uma relação não harmoniosa entre esses países. Hoje, as fronteiras entre Marrocos e Argélia estão fechadas e os laços diplomáticos estão cortados, sendo a principal animosidade o tema do Saara Ocidental. Enquanto o Marrocos reclama esse território, a Argélia apoia política e militarmente a Frente Polisário, a guerrilha independentista da região. Como foi demonstrado no início desse texto, essa questão é tão basilar para os países que ultrapassa os âmbitos diplomáticos e permeia em outros contextos, como os esportivos, resultando em situações como a vivida na Copa das Confederações da CAF. 

Ademais, divergências também são encontradas quanto ao posicionamento dos países frente a eventos esportivos regionais, continentais e mundiais. A Argélia, por exemplo, utilizou da sua posição de país sede dos Jogos Africanos de 2007 como uma demonstração da estabilidade do país após uma sangrenta guerra civil. Na atualidade, o país pauta suas agendas esportivas nos princípios de uma união do continente africano e de um pensamento anticolonial — os argelinos, inclusive, não participam dos Jogos Francófonos, por não reconhecerem a língua colonizadora, o francês, como língua oficial do país. Marrocos, em outra abordagem, não compactua completamente com os preceitos da União Africana, uma vez que a própria organização tem uma opinião sobre a questão do Saara Ocidental que desagrada o Palácio Marroquino. Enquanto isso, a Tunísia foca na promoção do esporte para um desenvolvimento do turismo no país. 

Posições como essa e outras são apresentadas no artigo de Bouandel e Amara, de modo que se forma um panorama das atitudes político-esportivas assumidas na região. De maneira geral, os autores de fato exploram uma lacuna no campo das Relações Internacionais e trazem reflexões interessantes sobre as dimensões geopolíticas do esporte no caso dos países magrebinos analisados. No entanto, é importante pontuar que, ao focar demais na enumeração de exemplos, o artigo não consegue explicá-los com profundidade e estabelecer conexões entre eles. Além disso, sua conclusão destoa do resto do texto ao destacar que o esporte não seria um instrumento político decisivo, minando seus argumentos anteriores. Dessa forma, sua relevante mensagem perde força devido à falta de coesão e de um fio condutor forte.

Em suma, o texto “Esporte e Relações Internacionais no Norte da África” busca demonstrar que o esporte reflete e contribui para a construção de fenômenos geopolíticos, a exemplo da tensão entre países magrebinos e dos seus desejos de aproximação à Europa Ocidental e ao Mediterrâneo, por um lado, ou aos demais países africanos, por outro. Nesse contexto, ele logra convencer o leitor de que Marrocos, Tunísia e Argélia se apropriaram do esporte — antes uma ferramenta francesa de aculturação — e o incorporaram aos seus projetos de poder nacionais, algo que se manifesta no boicote, na participação e na realização de eventos esportivos que representam certas noções de mundo (como a Francofonia ou o pan-africanismo). Dessa forma, ainda que sua estrutura mine a própria argumentação em certos momentos, ele faz contribuições valiosas ao estudo das Relações Internacionais, que devem ser consideradas por acadêmicos com interesse no tema.

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Fundado por alunos de Relações Internacionais da USP, somos um grupo de extensão que tem como missão promover a pesquisa e a extensão universitária na área de Relações Internacionais.