Etiópia e a Guerra do Tigré
Por Laura Burgos e Matheus Veríssimo
O que foi a Guerra do Tigré?
No fatídico ano de 2020, quando os olhares da comunidade internacional estavam voltados para o combate da pandemia do Covid-19, iniciou-se o que alguns analistas cunharam “o conflito mais sangrento do século”. A Guerra do Tigré, cujos combates se concentraram na província homônima da Etiópia, passou despercebida por boa parte dos olhos do mundo, algo estranho quando considerada a magnitude da destruição que o conflito gerou em seus 2 anos de duração. Neste artigo traremos um breve olhar sobre esse conflito e sobre as perspectivas da Etiópia.
Iniciados em 3 de novembro de 2020, os combates contrapuseram forças separatistas tigrínias, tanto do governo provincial quanto de milícias simpatizantes, e forças do governo federal etíope, o qual contava com tropas federais, de outras províncias e grupos paramilitares. Além de combatentes etíopes, a Eritreia (país vizinho que faz fronteira direta com a província do Tigré) interveio na guerra ao lado das forças leais a Adis Abeba.
Créditos: Geographical
O conflito também pode ser entendido como um levante da Frente Popular de Libertação do Tigré (FPLT), partido que liderava a coalizão governista em Adis Abeba até 2018, contra o governo de Abiy Ahmed, membro do Partido da Prosperidade (PP) e sucessor na liderança da coalizão governista. A FPLT reivindica representar os interesses de sua província local e nacionalmente e alegou que o governo liderado pelo PP ameaçava marginalizar os tigrínios, o que foi o estopim para o início das hostilidades.
As estimativas do número de vítimas do conflito variam consideravelmente, com as mais modestas apontando para 300.000 pessoas e as mais alarmistas indicando 800.000, durante os 2 anos de combates. Para colocar esses números em perspectiva, a infame e sangrenta Guerra Civil Síria vitimou, em seus 13 anos de duração, algo em torno de 500.000 pessoas. Além disso, estima-se que 2 milhões de pessoas foram desalojadas em decorrência dos combates, o equivalente a mais de um terço da população do Tigré.
Créditos: The Independent
Os antecedentes da Guerra do Tigré
Para que se compreenda melhor as origens do conflito, devemos retornar ao fim da Guerra Civil da Etiópia em 1991. Após anos de conflito, a Frente Democrática Revolucionária Popular do Povo Etíope (FDRPPE), uma coalizão de partidos oposicionistas, derrubou o regime ditatorial do Partido dos Trabalhadores da Etiópia e iniciou um governo de transição.
A FDRPPE manteve sua hegemonia política no regime parlamentarista que sucedeu a ditadura, estabelecendo governos consecutivos sob a liderança da FPLT entre 1991 e 2018. Durante esse período, um tênue equilíbrio de poder foi mantido entre as principais etnias que compunham a coalizão governista: os oromos (34,4% dos etíopes), os amaras (27,0% da população), os tigrínios (6,1% dos habitantes) e etnias do sul da Etiópia. Ademais, os governos liderados pela FPLT mantiveram um histórico de tensões com a Eritreia, decorrentes de disputas territoriais e de acesso etíope ao comércio marítimo internacional.
Créditos: New York Times
Em 2018, porém, o PP, liderado pelo oromo Abiy Ahmed, sucedeu a FPLT tigrínia na liderança da coalizão governista. O governo do PP desescalou muitas das tensões com a Eritreia através de negociação e acordos, o que rendeu a Ahmed o Prêmio Nobel da Paz em 2019. A FPLT, porém, almejava reestruturar-se e retornar ao poder em eleições previstas para 2020.
O adiamento do pleito de 2020, justificado por Adis Abeba em decorrência da pandemia, gerou revolta na província de Tigré, onde foi realizada uma eleição não reconhecida pelo governo central que concedeu vitória à FPLT. O conflito se deflagrou após o governo de Abiy Ahmed enviar tropas federais para combater militantes tigrínios, os quais alegadamente atacaram uma base militar na região.
Créditos: EBC
As facções da Guerra do Tigré
A guerra envolveu forças regulares dos governos federais da Etiópia e da Eritreia, forças regulares de governos provinciais da Etiópia e forças paramilitares de diversas etnias. Somando todos os beligerantes envolvidos, estima-se que cerca de 1 milhão de combatentes estavam mobilizados e ativos na região de conflito.
Do lado dos tigrínios, foram formadas as Forças de Defesa do Tigré (FDT), com laços à FPLT, que incluíram desertores das forças federais, milícias tigrínias e simpatizantes na província. Ademais, as FDT foram apoiadas temporariamente por desertores eritreus e pelo Exército de Libertação Oromo (ELO), uma milícia oromo com intenções separatistas.
Do lado de Adis Abeba lutaram as forças armadas federais da Etiópia, as forças armadas da Eritreia, as forças dos governos provinciais de Amhara e de Afar e o Fano, um grupo de milícias amaras.
Créditos: Geopolitical monitor
“O conflito mais sangrento do século”
A Guerra do Tigré marcou 2 anos de violência praticamente ininterrupta na Etiópia, pois muitas tentativas de se estabelecer um cessar-fogo entre as partes foram efêmeras ou fracassaram abertamente. Dito isso, o conflito se deu, resumidamente, em 3 fases: uma ofensiva inicial contra o Tigré, uma contraofensiva das FDT e um impasse.
Na primeira fase da guerra (entre novembro de 2020 e junho de 2021), o governo de Ahmed, alegadamente reagindo a ataques da FPLT, iniciou uma ofensiva brutal dentro da província de Tigré com apoio da Eritreia. Um estado de cerco é instaurado na região, intensos combates decorrem entre tropas federais e separatistas e a população civil da região sofre o flagelo da guerra.
Créditos: Seyoum Getu/DW
Em uma segunda fase (entre junho e novembro de 2021), as FDT iniciaram um pesado contra-ataque sobre as forças de ocupação, seguidas por uma campanha de incursões contra a Eritreia e as províncias vizinhas de Amhara e Afar. Nesse momento as FDT contaram com o apoio dos desertores eritreus e do ELO, chegando a ameaçar um ataque contra a própria capital, Adis Abeba.
Por fim, na fase final do conflito (entre novembro de 2021 e novembro de 2022), as forças federais de Adis Abeba, rearmadas, reorganizadas e apoiadas pelo Fano, contra-atacaram as forças rebeldes. A guerra então atingiu um momento de impasse no qual os combates se mantiveram sem avanços significativos de nenhum dos lados. Após toda a carnificina, o governo federal etíope e a FLPT decidiram negociar um cessar-fogo definitivo em acordos firmados na África do Sul no qual as FDT aceitam depor suas armas.
Créditos: Eduardo Soteras/AFP/Getty Images
As atrocidades da guerra
Acredita-se que todos os lados envolvidos no conflito cometeram graves violações dos Direitos Humanos, afirmação sustentada por Antony Blinken – Secretário de Estado dos EUA. A violência se deu de forma praticamente indiscriminada, com ataques brutais e represálias sangrentas sendo corriqueiras durante as hostilidades.
Relatos de massacres indiscriminados contra a população civil vieram à tona, alegadamente perpetrados conjuntamente por militares etíopes e eritreus contra a população tigrínia, após a descoberta de grandes valas comuns por meio de imagens de satélite. Ademais, casos de estupros coletivos também foram registrados no conflito, com testemunhas locais alegando que as vítimas têm idades tão tenras quanto 8 anos e tão avançadas quanto 72.
As violações de direitos básicos não se restringiram somente a ações de agressão física direta, com o cerco instaurado por Adis Abeba contra o Tigré visando impedir a entrada de recursos essenciais à população na zona de conflito, isso incluindo alimentos, medicamentos, água, energia elétrica e até telecomunicações. Essa ação do governo central deixou milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar severa, algo reconhecido por Mark Lowcock, Subsecretário-geral de Assuntos Humanitários da ONU.
Créditos: The Economist/Getty Images
O resultado dessa realidade foi catastrófico: com estudos realizados pela Universidade de Ghent em 2023 estimando em cerca de 500 mil os civis mortos em decorrência da guerra, 60% dos quais seriam vítimas da fome. Diante dessa realidade aterradora de uso da fome como arma de guerra e de ataques que tinham como alvo a população civil, organizações, como a Anistia Internacional, acusam o governo de Abiy Ahmed de ter iniciado uma campanha de limpeza étnica no Tigré.
Entre a cegueira arbitrária e aqueles que não têm escolha
A falta de testemunhas em conflitos para que sejam asseguradas prestação de contas, proteção dos direitos humanos e justiça por sua transgressão é sinal de falha e motivo de pesar para o Direito e a cooperação Internacionais. Nesse sentido, o governo liderado pelo PP buscou ativamente restringir o acesso de observadores internacionais e de jornalistas à zona de conflito, o que deixa diversas lacunas quanto a escala real desses acontecimentos.
Além disso, há preconceitos e estereótipos em relação ao continente africano, como a naturalização de conflitos na região e a sua consequente banalização. Sem mencionar, ainda, a questão eurocêntrica e de interesses, como bem ilustrado pelo estouro da guerra entre a Rússia e a Ucrânia em 2022, no qual houve uma comoção generalizada, ao mesmo tempo em que poucos sabiam da existência de um dos piores conflitos do século, em curso há dois anos na época.
Créditos: USIP – Finbarr O’Reilly/The New York Times
A soma de todos esses fatores leva a pensar em quantas violências poderiam ter sido evitadas caso a comunidade internacional tivesse se empenhado mais em adquirir informações e consciência acerca do conflito.
Outro fator pouco noticiado foi a transferência do processo de pacificação e justiça para o próprio governo etíope, mesmo com relatórios da Comissão Internacional de Peritos em Direitos Humanos para a Etiópia, instituída pela ONU, que declaram a necessidade de maior investigação sobre os acontecimentos da guerra, sobretudo em relação aos crimes de extermínio e genocídio. Em teoria, o governo da Etiópia se comprometeu a estabelecer mecanismos internos de responsabilização, contudo, é altamente provável que essa ação seja uma ferramenta de desvio de atenção e coerção internacional. Os efeitos disso são perigosos, já que a falta de justiça deixa a população em risco de futuras violações em níveis ainda piores, bem como abre precedentes para que outros governos atuem de modo semelhante com seus próprios cidadãos, o que constitui um lapso enorme para a garantia dos direitos humanos a nível mundial.
Créditos: Japan Times – Reuters
O caleidoscópio do Chifre
Uma das consequências mais marcantes desse conflito foi o acirramento de tensões entre grupos étnicos dentro (e fora) da Etiópia. O posicionamento de grupos separatistas da etnia Oromo, como o ELO, ao lado dos rebeldes tigrínios durante a guerra têm fomentado a animosidade com grupos da etnia Amhara, cujas milícias combateram ao lado das forças federais, resultando em ataques mútuos entre esses grupos.
Além das tensões entre etnias que combateram em lados opostos do campo de batalha, também começaram a aparecer conflitos entre grupos anteriormente aliados. Ilustração clara disso foi a prisão de 4.000 pessoas em Amhara pelo poder central, visando os grupos Fano fortalecidos após a vitória na guerra e percebidos como uma ameaça potencial ao governo em Adis Abeba. Outro exemplo evidente desse tipo de tensão foi a incorporação de todas as forças regionais ao sistema de segurança nacional, uma determinação encarada como uma investida para a redução da autonomia das etnias minoritárias e que causou uma onda de protestos e de resistência.
Créditos: British GQ
Outro ponto de preocupação no pós-guerra é a relação Etiópia-Eritreia, que eram aliadas durante o conflito. Dado o histórico agressivo entre os países quando a FPLT estava no governo, as forças da Eritreia têm motivo para querer enfraquecer a região do Tigré, sobretudo considerando que o país não foi signatário do tratado de paz entre o governo central etíope e os tigrínios, o que pode levar a permanência de tropas no país ou até mesmo tentativas de intervenção para afetar o Tigré. Tais atitudes significariam uma afronta à soberania etíope, a qual a resposta do governo de Abiy Ahmed apresenta um leque de possibilidades, dentre as quais uma reestruturação de alianças e retorno da agressividade entre os dois países, representando ainda mais instabilidade na região do chifre africano.
Créditos: Anadolu Ajansı
O que esperar do futuro?
Passados dois anos desde o fim da guerra, é evidente que seus impactos perdurarão, trazendo um futuro de inseguranças para a população etíope.
As tensões mencionadas no bloco anterior significam, de forma concreta, a continuidade do conflito para muitos em uma escala menor. Na região do Tigré, tropas eritreias ainda se fazem presentes, sendo acusadas de diversos crimes, como o roubo de animais, sequestro e assassinato, além de se entreporem ao retorno de famílias tigrínias às suas terras natais. Somando-se a isso as tensões étnicas entre grupos, obtém-se um autêntico barril de pólvora pronto para ser deflagrado por qualquer crise inesperada e explodir em uma nova guerra.
Há de se considerar, ainda, os estragos causados pela guerra em pilares da sociedade local, como a saúde. O conflito deixou o sistema de saúde quase inoperante em um momento de maior necessidade, com 50% de unidades de saúde preservadas na região de Amhara e apenas 3% no Tigré. A superlotação do que restou da estrutura de saúde leva a pressão ainda maior por recursos médicos, os quais também se apresentam escassos. Apesar de certo empenho do governo em reconstruir esse setor, a estimativa é que são necessários 1,4 bilhões de dólares, e as instabilidades do pós-guerra também podem afetar esse número.
Fonte: Bloomberg – Yasuyoshi Chiba/AFP/Getty Images
Para mais, a situação da educação no país também se encontra em estado extremamente precário, revertendo avanços de anos prévios. De acordo com o Tigray Education Bureau, 88,3% das salas de aula foram destruídas e materiais como livros, computadores e equipamento de laboratório também foram perdidos. Isso constitui um cenário catastrófico para o futuro do país, já que uma geração inteira perderá um dos mais importantes recursos para sua formação e, por consequência, da sociedade e política etíope como um todo.
Enfim, a Guerra do Tigré pode ter se encerrado formalmente, porém, tanto a presença militar eritreia e as violências internas da própria Etiópia, quanto a catástrofe na saúde e na educação demonstram a permanência do contexto de tensão, crise e violação de direitos humanos. É ambicioso declarar com certidão o que será do futuro dessa conjuntura, contudo, as perspectivas não indicam uma reconstrução simples, tampouco linear.
Referências
- https://www.ohchr.org/sites/default/files/documents/issues/casualtyrecording/cfis/hrc-res-50-11/subm-casualty-recording-academia-ghent-university-51.docx
- http://petrel.unb.br/destaques/176-a-etiopia-e-a-guerra-do-tigre
- https://relacoesexteriores.com.br/desenvolvimento-conflito-tigre-etiopia/
- https://www.cfr.org/global-conflict-tracker/conflict/conflict-ethiopia
- https://geographical.co.uk/culture/tigray-the-war-the-world-forgot
- https://amp.cnn.com/cnn/2021/11/03/africa/ethiopia-tigray-explainer-2-intl
- https://www.bbc.com/news/world-africa-54964378.amp
- https://www.aljazeera.com/amp/news/2022/11/10/two-years-of-ethiopias-tigray-conflict-a-timeline
- https://apnews.com/article/blinken-ethiopia-tigray-eritrea-war-crimes-da5d9ac7c900c58cc34b9ca5d4156667
- https://www.refugeesinternational.org/reports-briefs/scars-of-war-and-deprivation-an-urgent-call-to-reverse-tigrays-humanitarian-crisis/
- https://www.bbc.com/news/world-africa-57422168
- https://www.washingtonpost.com/world/2023/07/07/ethiopia-massacre-graves/
- https://www.theguardian.com/global-development/2021/may/14/rape-used-as-weapon-war-tigray-ethiopia-witnesses
- https://www.wilsoncenter.org/blog-post/tigray-war-and-education
- https://gh.bmj.com/content/6/11/e007328
- https://amp.theguardian.com/global-development/2023/aug/07/people-are-under-siege-why-ethiopias-war-in-tigray-isnt-over
- https://www.economist.com/middle-east-and-africa/2023/01/12/ethiopias-war-in-tigray-has-ended-but-deep-faultlines-remain
- https://www.aljazeera.com/gallery/2023/11/2/photos-one-year-on-peace-holds-in-tigray-but-ethiopia-still-fractured
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