“Mulheres de conforto”: o estupro como arma de guerra japonesa
Por Izabelli Goes e Kauan Alves Siqueira
Contexto da Guerra no Pacífico
A Restauração Meiji, ocorrida em 1868 no Japão, encerrou a predominância das ditaduras feudais nacionais e estabeleceu o Império Japonês (1868-1942), que marcou o fim do feudalismo e deu início ao período de modernização japonesa a partir da centralização do governo e de reformas políticas, econômicas e sociais que visavam situar o país na economia capitalista vigente da segunda metade do século XIX.
Dessa forma, a incipiente industrialização japonesa, aliada à falta de recursos naturais no país, a ambição de estabelecer uma esfera de influência dominante na Ásia devido a crença de superioridade cultural e racial do Japão e a crescente militarização nipônica resultaram no intenso expansionismo colonial do Império Japonês, com a consequente anexação de territórios da Ásia e do Pacífico via conflitos armados.

O Tratado de Anexação Japão-Coreia de 1910, incorporou oficialmente a Coreia ao Império Japonês, que implementou diversas medidas a fim de fortalecer o seu domínio colonial, como a distribuição de terras coreanas para japoneses, o que causou o deslocamento forçado de milhares de agricultores nativos e instituiu uma política de supremacia cultural, substituindo o idioma, os nomes e a religião coreana por versões japonesas. Além disso, explorou os recursos naturais coreanos e moldou a economia nacional para atender às demandas japonesas, fornecendo alimentos, minerais, mão de obra forçada e materiais de guerra ao Império, lógica acentuada durante a Segunda Guerra Mundial, em que cerca de 6 milhões de coreanos foram convocados como soldados e/ou trabalhadores forçados.
Em meio a Segunda Guerra Sino-Japonesa, iniciada em julho de 1937 a partir da campanha expansionista japonesa contra a China, os soldados do Império do Sol Nascente invadiram Nanquim, na China, em 13 de dezembro de 1937 e, durante 6 semanas contínuas, submeteram civis e soldados chineses a torturas, estupros e mortes violentas. Estima-se que entre 20 mil a 80 mil mulheres e crianças tenham sido estupradas e que 300 mil chineses morreram no que ficou conhecido posteriormente como o Massacre de Nanquim.

“Estações de conforto”
Com temor do crescente sentimento anti-japonês devido às atrocidades cometidas pelas forças militares do Império do Sol Nascente, como os inúmeros casos de violência sexual praticados pelos soldados nas regiões ocupadas, em adição ao receio de que mulheres locais oferecessem serviços sexuais aos soldados para espionarem e repassarem informações acerca do exército japonês aos inimigos e potencializado pela péssima repercussão internacional do Massacre de Nanquim, o Japão mobilizou um grande número de mulheres para bordéis militares em diversos países com o objetivo de satisfazer as “necessidades sexuais dos seus soldados”, o que instituiu oficialmente as chamadas “estações de conforto”.
É possível inferir que o desenvolvimento do sistema de conforto evidencia a utilização da violência sexual como uma estratégia de guerra, em função da crença do Império Japonês de que a escravidão sexual era um fator essencial para melhorar o desempenho dos seus combatentes na guerra.

Inicialmente, as “mulheres de conforto” eram japonesas e, em sua maioria ex-prostitutas, as quais apresentavam altas incidências de doenças venéreas (ISTs). Sendo assim, para evitar a propagação de doenças sexualmente transmissíveis entre os soldados e a ocorrência de crimes sexuais nos territórios ocupados, que prejudicava a colaboração da população local com o governo, o imperador Hirohito, comandante supremo das forças armadas japonesas, promulgou a Portaria Imperial nº 51952, que estabeleceu a base legal para que o governo recrutasse milhares de jovens mulheres solteiras das colônias japonesas (presumidamente virgens) para servirem como escravas sexuais nas “casas de conforto”. O “recrutamento” incluiu principalmente mulheres da Coreia colonial e, em menor escala, mulheres japonesas e de outros territórios ocupados, tais como Filipinas, Taiwan, Cingapura, Indonésia, Birmânia (Myanmar), Tailândia e Vietnã.

Yoshida Seiji, integrante do exército japonês, responsável por recrutar as jovens coreanas para levá-las aos bordéis entre 1943 e 1944, disse que o exército imperial fornecia caminhões e soldados especializados para lidar com as vítimas, que eram presas de várias formas, incluindo rapto, coerção ou por falsas promessas de emprego, que atraíam principalmente mulheres pobres, em razão da interseccionalidade entre o poder colonial, o gênero e a classe, intensificada pela expulsão de famílias pobres de terras rurais coreanas, fato que gerou uma massa populacional considerável de sem terra e de migrantes desempregados nas cidades, de modo que muitas jovens de famílias pobres estavam dispostas a saírem de casa para trabalharem no Corpo de Serviço Laboral “Voluntário”, instituído pelo Ato Geral Nacional de Mobilização japonês de 1938, sob o argumento de que o trabalho dos colonos ajudariam o Império durante a sua Guerra expansionista no Pacífico.
Nas “casas de conforto”, as mulheres passavam fome e eram mantidas em quartos imundos e pequenos, de aproximadamente 1,85 m², e eram forçadas a ter relações sexuais com soldados japoneses de 10 a 30 vezes por dia, mas em certos casos podendo chegar até 70. Além de tudo, elas eram submetidas a tratamentos extremamente desumanos e brutais, que envolviam espancamento, queimaduras de cigarro, tortura e esfaqueamentos. Quando tentavam fugir das estações, elas eram perseguidas sob alvejamentos e corriam risco de serem assassinadas. O uso de preservativos era altamente recomendado por autoridades oficiais, entretanto, sua disponibilidade era restrita, recaindo às mulheres a degradante tarefa de lavarem e reciclarem os preservativos, a fim de impedir a disseminação de doenças venéreas.

Elas eram submetidas à exames periódicos para identificarem a presença de DSTs e quando não tinham abortos espontâneos em virtude da conjuntura de constante violência a qual estavam inseridas, eram submetidas a injeções e procedimentos abortivos, o que fez com que muitas mulheres se tornassem estéreis. Como se não bastasse toda essa violência sexual e psicológica, muitas “mulheres de conforto” ainda eram obrigadas a doarem sangue para combatentes japoneses feridos em guerra.
Devido à realidade aterrorizante em que se encontravam, muitas mulheres se tornaram dependentes de narcóticos, principalmente de ópio e de bebidas alcoólicas, como um meio de atingir um estado de alívio mental que as distanciasse da violência que enfrentavam diariamente. Nesse contexto, muitos soldados ofereciam essas drogas como recompensa por obediência para evitar rebeliões, e exploravam sexualmente mulheres inconscientes, de forma ainda mais violenta do que o habitual. Muitas delas morreram, seja por DSTs, suícidio ou assassinato.
Depois das bombas de Hiroshima e Nagasaki lançadas sobre o Japão em 1945, o país se rendeu oficialmente, as “mulheres de conforto” sobreviventes foram libertadas e os territórios ocupados conquistaram a sua independência em relação ao antigo Império nipônico.

O número exato de vítimas dessa escravização sexual é desconhecido, já que o governo japonês destruiu a maioria dos documentos que datam desse período com a preocupação de sofrer retaliações pela violação dos direitos dessas mulheres, entretanto, é estimado que a quantidade de mulheres capturadas por esse sistema varie entre 80 mil e 200 mil, sendo que aproximadamente somente 30% delas sobreviveram. Esse apagamento histórico realizado pelo governo japonês dificultou a inserção deste assunto na agenda de discussões internacionais do pós-guerra e impediu a presença da questão das “mulheres de conforto” nos tratados de paz.
Yong Soo Lee, sobrevivente das “estações de conforto” disse em discurso realizado em 2007 no Comitê de Relações Exteriores da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos que os soldados tiraram tudo dela: a sua juventude, a sua autoestima, a sua dignidade, a sua liberdade e a sua família. Em entrevista à BBC, Ok-seon, outra sobrevivente, descreve as “casas de conforto” como “matadouros, não para animais, mas para humanos.” Em relato dado por uma ex-”mulher de conforto”, ela descreve sua experiência da seguinte maneira: “Eu vi tantas mortes, tanta doença. Meninas chegavam, ficavam doentes e grávidas. Os japoneses nos injetavam muitas drogas para termos abortos. Às vezes, nossos corpos se inchavam como balões, mas os soldados japoneses não se importavam. Eles se alinhavam por sexo dia após dia. Eles não se importavam se as meninas estavam sangrando. Eles ainda as forçavam ao sexo.”

O silêncio de meio século na sociedade patriarcal coreana
Como país marcado pela sede de luxúria, é de se esperar que o Japão empregue intenso esforço para apagar a barbárie cometida. Entretanto, quando enxerga-se através da perspectiva sul-coreana, enquanto nação mais abalada pelas atrocidades, adotar o silêncio como posicionamento oficial por cerca de 50 anos torna-se incompreensível. Se, por um lado, Tóquio nega, minimiza e distorce os crimes do sistema de “mulheres de conforto”, por outro, Seul falha ao perpetuar em seu imaginário uma visão sexista que enxerga no abuso indiscriminado de suas cidadãs um mero incidente diplomático.

Por trás das desculpas oficiais e dos pedidos de reparação – insuficientes e tardios–, reside uma verdade incômoda: o constrangimento e o estigma associados às vítimas. Em uma cultura onde a “honra” feminina é tradicionalmente ligada à pureza e à família, as “mulheres de conforto” foram, por muito tempo, vistas não como sobreviventes, mas sim como vergonhas nacionais. A irracionalidade desta percepção, profundamente enraizada em valores patriarcais, levou ao ostracismo de muitas delas, silenciando suas vozes e dificultando a busca por justiça.
A Coreia do Sul, mesmo após a independência em 1945, manteve-se refém de uma moralidade confucionista que transformou as vítimas em culpadas. Enquanto o Japão negava sua responsabilidade histórica, a sociedade coreana internalizou a narrativa de que essas mulheres haviam “manchado” a honra da nação. Muitas foram rejeitadas por suas próprias famílias, como se o estupro sistemático a que foram submetidas fosse uma falha moral pessoal, e não um crime de guerra. Somente na década de 90, com o ato de coragem de Kim Hak-sun – a primeira sobrevivente a quebrar o silêncio publicamente –, que o tema ganhou visibilidade. As manifestações semanais em frente à embaixada japonesa em Seul, iniciadas em 1992, tornaram-se um símbolo da resistência, forçando o governo coreano a rever sua postura passiva.
No entanto, mesmo com a crescente pressão internacional, a resposta da sociedade sul-coreana permaneceu ambivalente. Enquanto uma geração mais jovem e progressista abraçou a causa, setores conservadores continuaram a tratar o assunto com desconforto, como se a confissão fosse um lembrete indesejado de fragilidade nacional. O discurso, que procura justificar a supressão com a desculpa da temporalidade, expõe a misoginia de uma sociedade que prefere enterrar a violência junto com suas mulheres.

Corda bamba diplomática: a instabilidade que caracteriza as relações entre Japão e Coreia do Sul
No pós-guerra, enquanto o Japão despontava como um dos principais Tigres Asiáticos, impulsionando sua economia a níveis sem precedentes, a Coreia do Sul buscava sua própria reconstrução e desenvolvimento. Nesse cenário, o pragmatismo econômico prevaleceu sobre as feridas históricas. A normalização das relações em 1965, com o Tratado Básico de Relações entre o Japão e a República da Coreia, foi um marco comprobatório, bem como um ponto de inflexão para o silenciamento das vítimas.

O Acordo, que visava a cooperação econômica e o estabelecimento de relações diplomáticas formais, incluía uma indenização do Japão à Coreia do Sul. No entanto, o montante foi tratado como “empréstimos e doações”, sem uma menção explícita ou reconhecimento direto da responsabilidade japonesa pelos crimes de guerra, sobretudo no que concerne ao sistema de escravidão sexual. Para o país nipônico, era a oportunidade perfeita de seguir em frente, focando em seu crescimento e projetando uma imagem modernizada. Para o governo sul-coreano, os fundos, embora controversos, eram vistos como essenciais para a infraestrutura e o desenvolvimento da nação, um valor superior que parecia justificar a superação do passado.
O ceticismo acerca da política sul-coreana decorre, em grande parte, dos eventos bélicos que sucederam o ano de 1945, especificamente, a Guerra das Coreias (1950-1953). O envolvimento do país em mais um confronto fez com que a população desejasse e confiasse em um líder com um perfil mais autoritário, que tivesse maior capacidade de mobilização dos exércitos, em caso de alguma ameaça à soberania. Dessa forma, o partido mais conservador firmou-se e acostumou-se com a majoritária parcela do apoio popular, a qual parecia não se abalar com a política agressiva e hostil empreendida contra os inimigos, principalmente, o Japão.
Em 2015, o teor das relações entre os dois países procurou assumir uma formulação mais pacífica. Nesse sentido, o governo japonês, à época representado pelo primeiro-ministro Shinzo Abe, assinou um acordo de ressarcimento, no qual comprometeu-se a pagar 7,5 milhões de euros à Coreia do Sul. O indulto, aceito de bom grado graças à bagatela prometida, tinha como um de seus principais critérios a resolução definitiva da questão, sem qualquer menção futura à mesma. No entanto, a deliberação logo ruiu, retomando, assim, a agressividade costumeira.
O tênue elo entre os Estados asiáticos foi novamente abalado em 2021, quando o Tribunal sul-coreano ordenou o pagamento de US$91.800 à 12 mulheres coreanas que foram violentadas pelas tropas japonesas. A decisão simbólica permaneceu somente na idealização burocrática, já que o governo japonês não reconheceu a causa. O ocorrido afastou ainda mais as nações, dificultando a tentativa estadunidense de aproximá-las na tentativa de conter a ameaça nuclear da Coreia do Norte e a crescente influência militar da China na região.
A fim de pavimentar um caminho de maiores esperanças, o ano de 2025 marca uma nova tentativa de reaproximação. Na comemoração do 60º aniversário da “normalização” das relações diplomáticas entre os países, o vice-ministro das Relações Exteriores do Japão, Funakoshi Takehiro, e o embaixador coreano, Park Cheol-hee, declararam que ambas as nações estão comprometidas com o fortalecimento dos laços e o bom convívio entre as populações. Também admitiram a importância do estabelecimento de um relacionamento bilateral sólido em meio ao instável cenário internacional.
Mesmo com as diversas iniciativas, pode-se perceber que o esquecimento segue como pilar central da comunicação entre os países. A instrumentalização do passado promovida pelo Japão e respaldada por seu ufanismo nacionalista deixa claro que esta continua sendo a mesma nação que destruiu provas de seu envolvimento, com o intuito de exonerar-se e reduzir seus atos à insignificância.

Referências
https://comfortwomeneducation.org/
https://www.britannica.com/place/Empire-of-Japan/Imperial-Japan
https://www.ige.unicamp.br/lehg/o-imperio-japones-1870-1942/
http://hdl.handle.net/10400.5/16529
https://disparada.com.br/coreia-do-sul-japao-mulheres-de-conforto/
https://thediplomat.com/2021/11/why-did-the-2015-japan-korea-comfort-women-agreement-fall-apart
https://portalmie.com/atualidade/2025/01/lideres-do-japao-e-coreia-do-sul-reafirmam-lacos-em-reuniao
https://www.wp.radioshiga.com/2025/02/torre-de-toquio-e-iluminada-para-comemorar-60-anos-de-lacos/
https://periodicos.ufpb.br/index.php/ricri/article/view/17698/10136
https://repositorio.unesp.br/server/api/core/bitstreams/1ab15edd-93b2-4889-9702-5ee91b6d106c/content
https://www.greelane.com/pt/humanidades/hist%C3%B3ria–cultura/world-war-ii-comfort-women-3530682
https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/12/151228_escravas_sexuais_japao_rs
https://youtu.be/a1WQuCa3ENE?si=n3zZPsYmvPxtxQ8I
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