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O legado da Revolução dos Cravos: 50 anos de mudança e liberdade

O legado da Revolução dos Cravos: 50 anos de mudança e liberdade

Escrito por: Luiza Krueger e Maria Luísa Almeida

Salazar e seu Estado Novo

António Oliveira Salazar atuou inicialmente no regime militar instaurado em Portugal em 1926, que pôs fim ao sistema parlamentar vigente, como Ministro de Finanças nos anos de 1928 até 1932. Durante esse período, ele procurou reduzir gastos do governo por meio de uma política de contenção de despesas com necessidades sociais, afetando diretamente a população portuguesa, principalmente os mais pobres, objetivando ordenar as finanças do Estado. Nessa conjuntura, embora tenham prejudicado a qualidade de vida dos cidadãos, as políticas de Salazar resultaram em um equilíbrio das contas públicas do país e garantiram a ele prestígio aos olhos da comunidade internacional e das forças armadas. Como consequência, Salazar tornou-se Presidente do Conselho, obtendo mais poderes dentro do regime.

Posteriormente, em 1933, Salazar instaurou o Estado Novo, um governo autoritário e unipartidário que manteve-se até 1974, quando foi derrubado pela Revolução dos Cravos. Uma das características mais marcantes do regime é sua longa duração baseada em estabilidade, pautada em instituições de repressão do governo, apoio internacional e da Igreja, colonialismo e um modelo econômico pouco industrializado. 

Ditador Antonio Salazar

O que faz uma ditadura ser uma ditadura

 

Dentre os aparelhos de repressão do regime, encontrava-se a violência ideológica, exemplificada pelo Decreto-lei n.o 27 003, de 4 de setembro de 1936, o qual determinava que detentores de cargos públicos deveriam jurar lealdade à sentença “Declaro por minha honra que estou integrado na ordem social estabelecida pela Constituição Política de 1933, com ativo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas”, sob a pena de demissão do cargo, assim como exposto no Artigo 7 do Decreto. 

Além disso, foram criadas milícias de cunho fascista tal como a Ação Escolar de Vanguarda em 1934, a qual caracterizou-se como a primeira organização juvenil diretamente influenciada por Salazar de cunho nacionalista e radical. Outra forma de controle do Estado Novo sobre a população foi a Polícia Internacional de Departamento de Estado (PIDE), a qual atuava com base na justificativa de garantir a segurança interna e externa do Estado por meio da repressão política de forma a prender indivíduos sem julgamento, estender o período de cárcere, torturar, controlar a emigração e gerenciar os estrangeiros. 

De acordo com Fernando Rosas, um historiador português amplamente envolvido com estudos relativos ao Estado Novo, em entrevista para a Veja, a grande duração do regime político foi fundamentada também pela violência. Segundo ele, “Dos fatores internos, por sua vez, destaca-se o fato de que o Estado combinava a violência preventiva com a violência repressiva. A censura à imprensa, cinema, teatro, bem como a criação de órgãos públicos que enquadravam ideologicamente a vida da família – a Legião Portuguesa, uma milícia anticomunista formada por jovens, a Organização das Mães para a Educação Nacional, que controlava a juventude nas escolas, ou a Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho, que fiscalizava ideologicamente os lazeres – instrumentalizou o cotidiano e levou à desmobilização cívica.”

Bases econômicas do Estado Novo

Durante o Estado Novo, principalmente nos primeiros anos, a economia portuguesa angariava-se na agricultura tradicional e pouco modernizada, baseada em princípios conservadores dos quais seguiam-se as bases do regime político. Nessa conjuntura, Salazar e seus simpatizantes apoiavam-se em uma moral civilizatória que defendia o mantimento das estruturas rurais em vista da exaltação do trabalho árduo a qual baseava-se a figura de Salazar, refletindo uma imagem de sacrifício pela pátria, já que a industrialização e acúmulo de capital significaria o desenvolvimento de novas classes sociais que poderiam superar o arcabouço estatal vigente ou levar à formação de um operariado que se mobilizaria contra o sistema e exigiria reformas políticas. Além do repúdio a ideais comunistas ou liberais que associavam-se com a industrialização.

Desse modo, a contenção de gastos alicerçada no protecionismo, que associava-se ao nacionalismo português ao evitar influências externas na economia a fim de garantir os interesses internos, somada aos elevados investimentos exigidos pelo desenvolvimento de uma indústria em Portugal, tal como a conservação de determinados valores e arranjos sociais, foram fatores que atrasaram a modernização portuguesa.

Política externa e colonialismo

Um dos principais pilares no qual o governo do Estado Novo se sustentava era o colonialismo, tanto por conta da construção do ideário do império nacional como por fatores econômicos. Desse modo, o conservadorismo do governo era refletido também nos esforços de Salazar em manter as colônias em um contexto no qual os movimentos pela independência na África e Ásia atuavam de forma intensa e eram aceitos por grande parte da comunidade global. Essa ordem imperial era essencial na visão de Salazar por representar a força de seu governo e o simbolismo da era marítima portuguesa, tornando-se um fator de orgulho perante as pressões de outros países sobre o regime. Além disso, a manutenção das colônias também significava a manutenção do status quo e dos subsequentes arranjos tradicionais apoiados pela Igreja e elites defensoras do regime. 

Na esfera econômica, as colônias serviam aos propósitos do Estado Novo de forma a serem locais de escoamento de produtos portugueses, em vista da ausência de competição com produtos manufaturados por nações mais industrializadas como no mercado europeu, e também por serem fonte de matéria-prima. Desse modo, era vantajoso aos industrialistas portugueses, que se fortaleceram ao longo das décadas, com destaque para o período que sucedeu a Segunda Guerra Mundial, manter esses territórios, tornando-os agentes importantes para o desenvolvimento do capital financeiro português. 

Como consequência, dentre as ações específicas que visavam conservar o controle sobre as colônias, a promulgação do Ato Colonial em julho de 1930 destaca-se. O Artigo 2 desse documento expõe de forma clara o caráter ideário da colonização, dado que nele é exposto que “É da essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas que nêles se compreendam, exercendo também a influência moral que lhe é adstrita pelo Padroado do Oriente.” Associado a isso, a motivação civilizatória e econômica é exemplificada, respectivamente e de forma contraditória, pelos seguintes artigos:

Art 15. do Acto Colonial: O Estado garante a proteção e defesa dos indígenas das colônias, conforme os princípios de humanidade e soberania, […]

Art 20.: O Estado somente pode compelir os indígenas ao trabalho em obras públicas de interesse geral da coletividade […].

Análogo a isso, a partir do momento em que os povos dominados pelo regime ditatorial de Portugal passaram a exigir independência, Salazar mostrou-se rígido com relação à manutenção da ordem. Esse posicionamento é explicitado, por exemplo, pela famosa alusão “Para Angola rapidamente e em força” preterida por ele na década de 1960, quando as nações intensificaram suas lutas, referindo-se ao movimento da Angola. Por meio desse tipo de atitude, o líder do Estado Novo deixou claro que, para ele, a guerra seria a única forma de resolver os conflitos que eclodiram em seus domínios ultramarinos. 

Ação lusitana em território angolês durante o período colonial

Uma ditadura bem longa 

O longo período de governo e a estabilidade que ele apresentou ao longo das décadas distinguem o regime do Estado Novo em um século de mudanças abruptas de sistemas de governos em todo o mundo. O próprio golpe militar que posteriormente se transformou no Estado Novo foi motivado pela instabilidade sociopolítica na qual encontrava-se o país no começo do século XX, seguindo o padrão europeu.

Nessa conjunção, vários são os motivos que possibilitaram esse fenômeno em Portugal além da repressão política do sistema. Dentre eles, a existência de uma classe operária pequena em vista da indústria pouco desenvolvida até a década de 1950, com destaque para a indústria de base, o qual levou a uma precária politização das classes destaca-se. Mesmo após o operariado passar a mobilizar-se por conta da industrialização, Salazar pôde frear as demandas por meio de reformas de superfície dadas a eles e aos novos industriais. Ademais, outro fator foi o apoio internacional proporcionado por uma suposta neutralidade durante a Segunda Guerra Mundial, o qual além de conferir prestígio à Salazar por sua “neutralidade colaborante”, concedeu a ele apoio de nações democráticas e viabilizou sua inclusão na fundação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) em 1949 e, em 1955, sua adesão na ONU. Esse apoio, principalmente estadunidense, também surgiu por conta do caráter anticomunista do regime ditatorial na conjuntura da Guerra Fria, algo similar ao caso da Espanha, onde Francisco Franco também obtia suporte de outras nações graças ao processo de bipolarização global. 

Além disso, a imutabilidade do regime baseada em seus valores conservadores, católicos – em vista do apoio dado pela Igreja, que designava o governo de Salazar uma dádiva – anti-industrializantes e nacionalistas estava alicerçada em uma atmosfera que não permitia mudanças ou reformas, reverberando na duração de 41 anos do Estado Novo desde o estabelecimento de sua Constituição em 1933 até sua queda em 1974.

Fim do salazarismo?

No dia 27 de julho de 1970, com 79 anos de idade, António de Oliveira Salazar morreu após sofrer um acidente vascular cerebral, embora ele já estivesse afastado do poder desde 1968, quando passou a manifestar problemas cerebrais após uma lesão. A morte de Salazar, contudo, não significou o fim do Estado Novo, pois o governo fascista continuou sob a liderança de Marcelo Caetano. Todavia, era evidente que a ditadura portuguesa tinha perdido forças e estava enfraquecida devido a uma combinação de fatores. 

Por que mudar? 

O golpe militar que rapidamente se converteu em uma revolução apoiada pela população, foi motivado pela conjuntura tensa que foi acumulada ao longo das décadas de regime repressivo e ditatorial em Portugal, entretanto, as guerras coloniais associadas à crise internacional de 1973 foram a faísca principal necessária para efetuar o movimento. 

Em Portugal, a crise do Petróleo de 1973 somada ao desvio de verbas que poderiam abrandar os seus efeitos para as guerras coloniais geraram um enorme descontentamento por parte do povo português. Ademais, a tentativa do governo de reverter os efeitos da industrialização atrasada consequente das políticas econômicas de Salazar ao longo do século XX, abrindo espaço para o capital internacional e posteriormente consolidando o setor industrial e financeiro na sociedade portuguesa, destituiu a burguesia agrária, que servia como base ideológica e econômica do regime, como classe hegemônica. Isso resultou em contradições inerentes que não poderiam ser resolvidas de forma a manter os pilares políticos.

O isolacionismo diplomático e político de Portugal perante a comunidade internacional por conta da insistência em manter as colônias também desgastava o governo de Caetano, e os revolucionários exigiam a entrada do país na União Europeia, o que era inviável considerando que Portugal possuía um governo fundamentado em uma política antidemocrática e colonialista.    

Politicamente, a censura, a repressão e a ausência de liberdades civis alimentavam um crescente descontentamento e oposição ao regime, no qual figuras aclamadas pelo público que se direcionava contra a ditadura eram depostas de seus cargos políticos, como a demissão do General António Spínola, que se posicionava contra o governo de Marcelo Caetano.

Economicamente, o regime enfrentava dificuldades significativas, com pesadas despesas decorrentes das guerras coloniais em África, que drenavam recursos financeiros e humanos, criando um estado de estagnação econômica e aumentando a dívida pública. Socialmente, o governo se tornava cada vez mais impopular, especialmente entre os jovens e as classes trabalhadoras, que sofriam com a falta de oportunidades, baixos salários e repressão política. A concentração de renda agrava-se à medida que os limitados recursos industriais do país ficavam restritos a uma pequena parcela da população.  

Por fim, a politização das forças armadas que atuavam nas colônias a fim de lutar contra os processos de independência foi essencial para colocar fim ao Estado Novo. Esse processo foi fruto da relativa liberdade que esses militares desfrutavam longe da repressão política do governo português, além da noção exata de como as lutas coloniais desenrolavam-se de forma violenta e prolongada. O grande número de mortes e feridos entre os soldados aumentava o sentimento de insatisfação e urgência por mudanças políticas, especialmente entre aqueles que defendiam uma solução pacífica para a situação das colônias. 

Movimento das Forças Armadas

 O Movimento das Forças Armadas (MFA) surgiu no início dos anos 1970, formado por um grupo de oficiais militares descontentes com a prolongada e desgastante Guerra Colonial em África, bem como com a rigidez e a falta de perspectivas do regime ditatorial do Estado Novo. Esse descontentamento foi exacerbado pela percepção de que a guerra era injusta e insustentável, além de causar imensos sacrifícios humanos e materiais. O MFA começou a se organizar secretamente, planejando uma intervenção para pôr fim ao regime e às guerras coloniais. Além da noção de que Marcelo Caetano deveria ser deposto, os militares passaram a atuar de forma a organizar um cenário político democrático que pudesse suceder o regime. 

Grândola, Vila Morena

Após meses de planejamento, no dia 25 de abril de 1974, os militares executaram o golpe de Estado cuidadosamente coordenado, utilizando senhas em músicas populares para sinalizar o início da ação e contaram com o apoio direto de setores populares, que juntaram-se no Terreiro do Paço, atual Praça do Comércio em Lisboa, local onde a coluna militar de 160 homens estabeleceu como destino da mobilização, e comemoram a rendição das forças do regime, que desenrolou-se de forma pacífica. O golpe foi marcado pela colocação de cravos nos canos dos fuzis dos soldados, simbolizando uma revolução pacífica. A rápida e eficiente execução do plano pelo MFA, aliado ao apoio popular e à falta de reação significativa das forças leais ao regime, garantiu o sucesso do golpe, derrubando o Estado Novo e iniciando uma nova era de liberdade e democracia em Portugal. 

Manifestação em 25 de abril de 1974

Nem tudo são cravos…. flores?  

Após a deposição estrategicamente coordenada de Marcelo Caetano, emergiu a Junta de Salvação Nacional como o alicerce do novo regime político português, adotando os princípios dos chamados 3 D’S: Democratizar, Descolonizar e Desenvolver. Este órgão governamental provisório foi criado pelo Movimento das Forças Armadas (MFA) com a finalidade de gerir o país durante a transição do regime ditatorial do Estado Novo para um sistema democrático. Composta por militares de alta patente, a Junta de Salvação Nacional desempenhou um papel crucial na estabilização inicial do país e na execução das primeiras medidas pós-revolucionárias, que incluíram a dissolução da polícia política (PIDE/DGS) e a libertação de presos políticos. Paralelamente, foi estabelecido o Processo Revolucionário em Curso (PREC), marcando um período de intensa agitação política e social. Este período visava conduzir o país através da transição do regime ditatorial do Estado Novo para um sistema democrático, promovendo reformas políticas, econômicas e sociais abrangentes. Em um movimento para redistribuir o poder econômico, setores-chave da economia, como a banca, seguros, transportes e comunicações, foram nacionalizados, buscando diminuir a influência das elites econômicas que haviam prosperado sob o Estado Novo. Além disso, a reforma agrária, notadamente no Alentejo, almejava a redistribuição de terras agrícolas, embora tenha enfrentado resistência de grandes proprietários e desafios na sua implementação. 

No dia primeiro de maio de 1974, uma semana após o golpe, a população portuguesa tomou as ruas em uma celebração efusiva da revolução, marcando uma das primeiras manifestações públicas da liberdade recém-conquistada. Milhões de cidadãos saíram às ruas em várias cidades do país, notadamente em Lisboa e no Porto, para celebrar o fim da ditadura e demandar melhores condições de trabalho e justiça social. 

Entretanto, essa atmosfera de celebração estava acompanhada por uma divisão clara na sociedade portuguesa. Uma parcela conservadora, alinhada aos ideais do regime salazarista, manifestava seu descontentamento com os rumos tomados pelos atos revolucionários, expressando o desejo de retorno ao Estado Novo. Este sentimento se tornou evidente em 11 de março de 1975, quando uma tentativa de golpe de Estado foi liderada por forças conservadoras insatisfeitas com a direção radical do processo revolucionário. Sob a liderança do general António de Spínola, essa tentativa foi rapidamente contida pelas forças leais ao Movimento das Forças Armadas (MFA), resultando, contudo, na intensificação do processo revolucionário, com uma onda de nacionalizações e a ampliação da reforma agrária. 

Posteriormente, em 25 de novembro de 1975, uma nova tentativa de golpe teve lugar, dessa vez protagonizada por oficiais moderados do MFA, que se opunham à crescente influência do Partido Comunista Português (PCP) e de outras forças de esquerda radical. Liderado por figuras como o coronel Jaime Neves, este golpe visava estabilizar a situação política e conter a radicalização do processo. Com o apoio de setores moderados da sociedade e das forças armadas, o golpe de 25 de novembro foi bem-sucedido, marcando a consolidação de uma via democrática e preparando o terreno para a criação de um governo constitucional. 

Essa tentativa, liderada por oficiais moderados do MFA, tinha como objetivo conter o avanço dos setores mais radicais, especialmente o PCP e as forças militares associadas a eles. O sucesso deste golpe marcou o fim do PREC e estabeleceu as bases para uma transição democrática mais estável. As forças moderadas conseguiram assumir o controle da situação, promovendo a normalização política e preparando o terreno para a realização de eleições democráticas. 

Uma nova Portugal 

Após a Revolução, para a funcionalidade da nova ordem política, era crucial o estabelecimento de uma nova ordem constitucional. As eleições para a Assembleia Constituinte foram realizadas em 25 de abril de 1975, exatamente um ano após a revolução, com uma participação massiva da população, ansiosa por liberdade e mudança. Este pleito, o primeiro em que todos os cidadãos portugueses tiveram direito ao voto, resultou na eleição de 250 deputados, representando uma ampla gama de forças políticas, desde comunistas a sociais-democratas e conservadores. 

A principal tarefa da Assembleia Constituinte foi a elaboração de uma nova Constituição que refletisse os anseios democráticos e garantisse os direitos fundamentais dos cidadãos. Após intensos debates e negociações, a Constituição da República Portuguesa foi promulgada em 2 de abril de 1976. Este documento histórico consagrou princípios essenciais como a soberania popular, a separação de poderes, a igualdade de género, a liberdade de expressão, e a criação de um Estado de Direito. A nova Constituição também instituiu um sistema de governo semipresidencialista, no qual o Presidente da República tem poderes significativos, mas partilha a governação com um primeiro-ministro e um parlamento eleitos. 

A formação do primeiro governo constitucional seguiu-se rapidamente à promulgação da Constituição. Em julho de 1976, Mário Soares, líder do Partido Socialista, tornou-se o primeiro primeiro-ministro do Portugal democrático. O governo de Soares enfrentou desafios significativos, incluindo a estabilização da economia, a gestão das tensões sociais e políticas, e a integração de Portugal nas comunidades internacionais após anos de isolamento.  

Este período foi também marcado pela consolidação das instituições democráticas e pela realização de eleições livres e justas, que permitiram a alternância no poder e a construção de uma cultura política baseada no diálogo e na participação cidadã. A nova Constituição e o governo constitucional de 1976 lançaram as bases para o desenvolvimento de uma sociedade pluralista e inclusiva, pavimentando o caminho para a estabilidade democrática e multipartidarista. 

Entretanto, o presidente português, Ramalho Eanes, não se identificava com os ideais socialistas. Suas ações governamentais foram direcionadas a influenciar o Congresso a não aderir integralmente às propostas de seu colega de governo, Mário Soares. Consequentemente, o governo português adotou uma orientação política mais alinhada ao liberalismo, afastando-se das concepções socialistas. 

Assembleia Constituinte portuguesa em 2 de abril de 1976

Enquanto isso, no continente africano… 

Com o intuito de cumprir o proposto na Junta de Salvação Nacional, a partir de 1976, Portugal deu início a um processo de descolonização que transformou radicalmente suas antigas colônias africanas. Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe tornaram-se independentes, cada uma enfrentando desafios únicos.  

A descolonização pós-Revolução dos Cravos impôs uma série de desafios às ex-colônias africanas de Portugal, influenciando suas trajetórias de desenvolvimento. As marcas da opressão e exploração imperialista moldaram sociedades dependentes das potências europeias para sustentar sua soberania e economia, deixando-as em desvantagem no mercado global. A instabilidade política, resultante de fronteiras arbitrárias desenhadas segundo critérios europeus, a herança colonial e a ausência de recursos administrativos após a retirada das metrópoles, permeou o continente africano no período pós-colonial.  

Em Angola, a independência proclamada em 11 de novembro de 1975 rapidamente se desdobrou em uma guerra civil devastadora entre facções rivais, como o MPLA, a UNITA e a FNLA. Este conflito, alimentado por rivalidades internas e interferências externas, durou até 2002, resultando em graves perdas humanas e na destruição da infraestrutura do país. Moçambique, que alcançou a independência em 25 de junho de 1975, também foi assolado por uma guerra civil entre o governo da FRELIMO e os rebeldes da RENAMO. Este conflito, que se estendeu até 1992, causou imensos danos econômicos e sociais, retardando o progresso da nação. 

Guiné-Bissau, que declarou sua independência unilateralmente em 24 de setembro de 1973 e foi reconhecida oficialmente após a Revolução dos Cravos, enfrentou uma trajetória turbulenta. O país sofreu com uma série de golpes de Estado e instabilidade política constante, o que dificultou significativamente seu desenvolvimento. A economia da Guiné-Bissau, predominantemente agrícola, continuou a enfrentar grandes desafios devido à falta de infraestrutura e investimentos. Em contraste, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, que se tornaram independentes em julho de 1975, evitaram conflitos armados, mas não ficaram isentos de dificuldades. Cabo Verde, apesar de sua relativa estabilidade política, lutou contra uma economia limitada por recursos naturais escassos. No entanto, o país conseguiu avanços sociais e econômicos significativos ao longo dos anos. 

Portugal sob os olhos do mundo 

No contexto da Guerra Fria, Portugal consolidou suas relações com os Estados Unidos e demais membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Como membro fundador dessa aliança, Portugal manteve-se como um aliado estratégico na luta global contra o comunismo, fornecendo bases militares essenciais, como a Base das Lajes nos Açores. Esta parceria foi fundamental para a política de defesa e segurança do país, garantindo sua posição no bloco ocidental e contribuindo para a estabilidade regional em um período de tensões internacionais. 

A transição democrática possibilitou a Portugal restabelecer seus laços com diversas nações e entidades internacionais, após um período de isolamento devido à política colonial repressiva. Esta reintegração foi crucial para afirmar a nova projeção de Portugal no cenário global. O país tornou-se membro de múltiplas instituições globais e regionais, promovendo uma abordagem externa mais inclusiva e colaborativa. A integração na Comunidade Económica Europeia (CEE) em 1986, atualmente União Europeia (UE), representou um marco essencial. Este processo não apenas modernizou a economia portuguesa por meio de investimentos e desenvolvimento, mas também consolidou a emergente democracia e facilitou reformas políticas e econômicas internas. 

Portugal também reformulou suas relações com suas antigas colônias africanas. Apesar de desafios iniciais, especialmente em decorrência dos conflitos internos nas ex-colônias, Portugal gradualmente estabeleceu laços de cooperação e amizade com esses países. A fundação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) em 1996 ilustra esses esforços, promovendo uma integração mais sólida em termos culturais, econômicos e políticos entre Portugal e suas ex-colônias. 

Portugal e Brasil

Os vínculos históricos, que remontam ao século XVI, inegavelmente demonstram que o que ocorre sob o teto português pode exercer um impacto profundo e duradouro em nossa própria morada. No contexto do Brasil, que estava submetido a uma ditadura militar desde 1964, a transição democrática em Portugal apresentou-se como um novo paradigma e um potencial aliado na promoção dos valores democráticos. As relações diplomáticas entre Brasil e Portugal, anteriormente estreitas, porém complexas devido à afinidade ideológica dos regimes autoritários, começaram a passar por uma reconfiguração. Com a democratização de Portugal, houve um estreitamento dos laços culturais e econômicos, respaldado pelo fortalecimento das instituições democráticas em ambos os territórios. O exemplo de uma transição relativamente pacífica de um regime autoritário para a democracia em Portugal serviu de inspiração para os movimentos opositores no Brasil. A revolução demonstrou a viabilidade de uma transição sem um derramamento massivo de sangue, incentivando a oposição brasileira a intensificar suas demandas por abertura política e por um processo democrático similar. A queda do regime ditatorial em Portugal, nação com laços históricos e culturais profundos com o Brasil, reforçou a convicção de que a redemocratização era não apenas possível, mas também desejável.

Sob o aspecto econômico, a transição em Portugal exerceu influência nas relações comerciais com o Brasil. A liberalização da economia portuguesa e a sua abertura para o mercado europeu abriram novas perspectivas para o comércio bilateral. Os investimentos portugueses no Brasil aumentaram, assim como as parcerias comerciais, particularmente nos setores da construção, telecomunicações e serviços. A relação comercial diversificou-se e fortaleceu-se, contribuindo para o crescimento econômico de ambos os países.

Ademais, é fato que, para a comunidade portuguesa residente no território brasileiro, a redemocratização propiciou um ressurgimento do sentimento de pertencimento e nacionalismo, elevando a identificação como português ou descendente desse povo a um motivo de orgulho.

Chega! 

No dia 7 de novembro de 2023, o Primeiro-ministro de Portugal, António Costa, do Partido Socialista, renunciou ao seu cargo após ser alvo de investigações pelo Ministério Público envolvendo irregularidades com relação a projetos de energia verde, abrindo espaço para novas eleições em 2024. 

O resultado das eleições de Portugal foram determinados no domingo do dia 10 de março de 2024, apontando a Aliança Democrática (AD) como a vencedora, garantindo a posse de Primeiro-ministro para Luís Montenegro. A AD é uma coalizão de centro-direita composta pelo Partido Social Democrata (PSD), Partido Popular Monárquico (PPM) e Partido Popular (CDS-PP), e após 8 anos, superou o Partido Socialista (PS), garantindo 79 deputados frente aos 77 deputados do PS. 

Embora tenha ficado em terceiro lugar nas eleições legislativas do país, o partido que obteve maior crescimento foi o Chega!, de extrema direita, obtendo mais que o dobro de deputados. Dentre as propostas do Chega!, a oposição aos avanços no que tange a imigração na União Europeia destaca-se como pauta do partido, sendo um dos pilares que atraem a parcela conservadora de Portugal. No dia 24 de maio de 2024, o Chega! postou em seu instagram uma imagem que exibia o aumento dos pedidos de asilo na Europa em fevereiro com a seguinte legenda:

“A Europa tem de ser solidária. Sempre foi com quem procurou uma vida melhor, sobretudo com quem fugiu da guerra. Mas não há bloco que aguente tantos pedidos de asilo, que não param de crescer, todos os dias… sem falar da imigração massiva que chega às nossas portas todos os dias. […] A Europa está em perigo e só tu a podes salvar!”

Em seu discurso após enunciados os resultados das eleições, André Ventura, deputado pelo Chega!, afirmou que “Hoje houve também em Portugal um ajuste de contas com a história, com a nossa história no pós-25 de abril. Houve um ajuste de contas com um país que durante décadas foi asfixiado, dominado, manipulado, atrofiado pela extrema-esquerda e esquerda que dominou redações, que dominou instituições, que dominou a nossa economia.” Por meio dessa fala, é evidente que André Ventura critica o processo político que sucedeu a Revolução dos Cravos, utilizando a polarização como ferramenta de angariar apoio para conseguir governar efetivamente durante os próximos quatro anos. 

Essa conjuntura de ascensão da direita em Portugal, coincidindo com 50 anos do fim do regime ultraconservador do Estado Novo, pode ser analisada como resultado da combinação de diversos fatores. Dentre eles, destaca-se o escândalo responsável pela destituição do líder do Partido Socialista, que acabou desgastando o aparato da esquerda portuguesa, o envelhecimento da população do país, a conjuntura de crise econômica que abala a Europa como um todo, abrindo espaço para que a direita traga supostas soluções milagrosas, a reformulação da história aliada a uma nostalgia retroativa que atrai a população para os “dias de glória do passado” e por fim, as estratégias em redes sociais, tais como promoção de discursos violentos e incisivos e uso de influenciadores que apenas desejam obter engajamento. 

Referências 

  1. https://adst.org/2015/04/the-carnation-revolution-a-peaceful-coup-in-portugal/
  2. https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/portugal-tem-que-pagar-custos-de-escravidao-e-crimes-coloniais-diz-presidente/
  3. https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/revolucao-dos-cravos-50-anos-entenda-movimento-que-derrubou-ditadura-em-portugal/
  4. https://www4.pucsp.br/neils/revista/vol.32/waldir_jose_rampinelli.pdf
  5. https://files.dre.pt/1s/1936/09/21600/10971097.pdf
  6. https://veja.abril.com.br/mundo/espectro-da-extrema-direita-ronda-portugal-diz-historiador-do-salazarismo
  7. https://www.defesa.gov.pt/pt/defesa/organizacao/comissoes/cphm/rphm/edicoes/ano1/n12021/bios/lidpolitica/aos
  8. http://repositorio.ulusiada.pt/bitstream/11067/5648/1/lh_4_2007_12.pdf
  9. https://www.bbc.com/portuguese/articles/c1vlr44lekdo
  10. https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd18z5r0zddo
  11. https://jornal.unesp.br/2024/04/08/votacao-expressiva-do-chega-reflete-crescimento-de-sentimento-anti-imigracao-em-portugal-mas-tambem-se-deve-a-dificuldades-economicas-e-ao-poder-das-redes-sociais-diz-pesquisador-da-unesp/
  12. https://ensina.rtp.pt/artigo/o-fim-de-salazar/
  13. https://oglobo.globo.com/blogs/blog-do-acervo/post/2024/04/a-revolucao-dos-cravos-e-o-fim-da-ditadura-em-portugal-ha-50-anos.ghtml 
  14. https://outraspalavras.net/historia-e-memoria/o-que-a-revolucao-dos-cravos-nos-ensina-hoje/ 
  15. https://www12.senado.leg.br/radio/1/conexao-senado/2024/04/24/historiador-fala-sobre-a-revolucao-dos-cravos-movimento-que-pos-fim-ao-regime-ditatorial-de-salazar-em-portugal
  16. https://www.nexojornal.com.br/explicado/2024/04/24/revolucao-dos-cravos-o-que-foi
  17. Maxwell, K. (1995). The Making of Portuguese Democracy. Cambridge: Cambridge University Press.
  18. https://www.jstor.org/stable/10.5699/portstudies.34.1.0020

 

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