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#OLHAR INTERNACIONAL: Crise no Cáucaso e mais um confronto em Nagorno-Karabakh

#OLHAR INTERNACIONAL: Crise no Cáucaso e mais um confronto em Nagorno-Karabakh

Escrito por: Victor Martinoja

NAGORNO #OLHAR INTERNACIONAL: Crise no Cáucaso e mais um confronto em Nagorno-Karabakh

Nagorno-Karabakh é um enclave armênio localizado na montanhosa região do Cáucaso do Sul que, todavia, é reconhecido internacionalmente como parte do território do Azerbaijão, uma ex-república soviética de maioria étnica islâmica. Dessa forma, apesar do suposto controle azeri sobre a região, o grupo que realmente tem exercido poder em Karabakh desde 1994 é uma coalizão separatista de armênios cristãos que representam o principal grupo étnico deste território. Essa conflituosa configuração geopolítica levou os governos de Yerevan e Baku, ao longo dos últimos trinta anos, a travarem duas das mais sangrentas guerras da história do Cáucaso. Já no último dia 19 de setembro, tropas azeris realizaram mais uma ofensiva militar contra os separatistas armênios, o que por pouco não levou a região a mais um violento conflito armado. Ainda assim, mesmo que uma calamidade maior tenha sido evitada, essas recentes movimentações orquestradas pelo governo do autocrata Ilhem Aliyev geraram uma severa crise migratória na região, que já começa a ser denunciada pela comunidade internacional como consequência de uma séria tentativa de limpeza étnica em Karabakh. Entretanto, para compreender esses eventos dos últimos dias, antes é necessário abordar com uma maior profundidade os antecedentes históricos dessa disputa.

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Mapa de Armênia e Azerbaijão com destaque para o território disputado. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2023/4/24/explainer-what-is-nagorno-karabakh-why-are-tensions-rising

Antecedentes Históricos

O impasse entre armênios e azeris sobre Nagorno-Karabakh remonta à Revolução Russa de 1917, quando, diante do iminente colapso do império de Nicolau II, armênios e azeris declararam a independência de suas respectivas repúblicas. Karabakh foi reivindicada por ambos os recém-criados países, de forma a instaurar uma disputa territorial que nunca foi resolvida. Isso ocorreu pois, logo em 1920, a União Soviética tomou controle sobre todo o Cáucaso, o que incluiu a anexação das duas repúblicas. Assim, sob o regime stalinista, o enclave armênio foi designado como uma região autônoma da República Socialista Soviética do Azerbaijão que não possuía acesso terrestre ao território armênio.

Como apontado pelo cientista político Ian Bremmer, tal quadro geopolítico se manteve relativamente estável até o final dos anos 80, quando, devido à desintegração da União Soviética, tensões étnicas entre Azerbaijão e Armênia levaram o Cáucaso a um novo conflito, a Primeira Guerra de Karabakh. Na ocasião, armênios que habitavam Karabakh declararam a independência do território em relação à recém-formada República do Azerbaijão. Como resultado, forças militares armênias e azeris disputaram o enclave em um sangrento conflito, que durou cerca de seis anos e tirou a vida de mais de 30 mil pessoas. Ao final da guerra, em 1994, tropas de Yerevan garantiram o controle sobre Nagorno-Karabakh e outros territórios azeris próximos. Assim, foi criada a chamada República de Artsakh, nome dado ao governo separatista, de origem armênia, que manteve o controle efetivo sobre a região até o último dia 28. Entretanto, vale notar que esse estado paralelo não foi reconhecido por nenhum membro relevante da comunidade internacional, com a exceção do próprio governo armênio, visto que nenhum tratado de paz entre Azerbaijão e Armênia foi firmado ao final da Primeira Guerra de Karabakh.

A República de Artsakh vigorou ao longo das últimas três décadas e, nesse meio-tempo, foram apenas esporádicos os conflitos entre Armênia e Azerbaijão. Em um cenário geopolítico pós-Guerra Fria, a Rússia também consolidou uma forte presença na região, de forma a reafirmar o Cáucaso como parte da sua esfera de influência. Meio à conflituosa relação estabelecida entre azeris e armênios, foi do governo de Yerevan que os russos mais se aproximaram, com o firmamento de alianças militares e o estreitamento de relações comerciais, apesar de Moscou ter vendido armas tanto para ambas as repúblicas. Por outro lado, ligações culturais e interesses estratégicos comuns também levaram o Azerbaijão a se aproximar da Turquia, um relevante agente geopolítico da região que não possui relações diplomáticas com Yerevan por ser responsável pelo Genocídio Armênio de 1915.

Essa balança de poder, entretanto, começou a se alterar ao longo da década de 2010, como indicado por analistas do The Economist. Isso se deve principalmente à ascensão do Azerbaijão como um grande exportador de petróleo e gás natural, processo catalisado pelo aumento dos investimentos turcos e pelo estreitamento das cooperações entre Baku e Ancara. Foi diante dessa conjuntura que o governo azeri, sentindo uma inédita vantagem geopolítica, decidiu lançar uma nova ofensiva sobre Nagorno-Karabakh nos últimos meses de 2020, iniciando assim a Segunda Guerra de Karabakh. Após pouco mais de um mês de confronto e cerca de 6500 baixas para ambos os lados, um armistício foi selado por meio de intermediários russos. Em termos territoriais, o Azerbaijão retomou o controle de algumas importantes cidades de Karabakh, enquanto a capital da República de Artsakh e a porção norte do enclave continuaram sob domínio armênio. Também vale destacar que um aspecto crucial acordado no armistício de 2020 era que o chamado Corredor de Lachin, a única rota terrestre que ligava Karabakh à Armênia, passaria por reformas e teria a sua segurança garantida por oficiais das forças armadas do Azerbaijão. Essas condições eram cruciais para Yerevan, que buscava uma alternativa para garantir a proteção dos mais de 120 mil armênios que moravam em Karabakh. Esse ponto do acordo de paz se tornou o pivô da crise que tomou o Cáucaso nos últimos meses.

Azerbaijan-Military-October-22-2020-e1603709200824 #OLHAR INTERNACIONAL: Crise no Cáucaso e mais um confronto em Nagorno-KarabakhTropas azeris durante o conflito de 2020. Disponível em: https://asiatimes.com/2020/10/azerbaijans-next-move-will-make-or-break-karabakh-war/

A crise recente

Como denunciado múltiplas vezes pela imprensa internacional, o acordo realizado entre Baku e Yerevan sobre o Corredor de Lachin foi alvo de uma série de violações por parte do governo do Azerbaijão. Em dezembro de 2022, por exemplo, cidadãos azeris realizaram um severo bloqueio no corredor, de forma a permitir a entrada apenas de oficiais da Cruz Vermelha e de peacekeepers russos em Karabakh. Já em abril, o exército do Azerbaijão criou e reforçou postos militares em pontos cruciais da estrada, evento que foi denunciado por Yerevan como “uma clara violação dos acordos firmados na trégua de 2020”. Oficiais de Baku deram a justificativa de que essas medidas, que quase cortaram totalmente o acesso de Karabakh ao mundo exterior, estavam sendo tomadas para conter o tráfico de armamentos aos separatistas de Artsakh.

Diante das crescentes tensões e acusações mútuas de que seus adversários estariam se armando, tropas azeris, sob o comando do autocrata Ilhem Aliyev, realizaram um ataque-relâmpago contra Karabakh no último dia 19. Após pouco mais de 24 horas de bombardeios, os separatistas armênios se renderam com um acordo de cessar-fogo negociado entre autoridades russas e Baku. O resultado final foi a capitulação da República de Artsakh e a desmobilização das organizações paramilitares armênias que atuam na região, o que garantiu a retomada do controle azeri sobre Karabakh. Especialistas apontam que o novo acordo firmado provavelmente salvou a região de um verdadeiro massacre, mas a crise humanitária já instaurada está sendo acompanhada de perto pela comunidade internacional.

Untitled-6 #OLHAR INTERNACIONAL: Crise no Cáucaso e mais um confronto em Nagorno-KarabakhEscombros em Stepanakert após bombardeios das Forças Armadas azeris Fonte: Ministério das Relações Exteriores da República de Artsakh, via Twitter

Uma complexa crise humanitária

Após a vitória das tropas do Azerbaijão, o presidente Ilhem Aliyev veio a público afirmar que seu governo transformaria Karabakh em “um paraíso novamente”. Em relação aos mais de 120 mil armênios que habitam a região, Aliyev disse que eles seriam absorvidos sem grandes traumas à sociedade azeri, com promessas de implementação de programas sociais e educacionais no território. Porém, como apontado pela Folha de São Paulo, a história local e as recentes reações à capitulação da República de Artsakh parecem indicar um cenário completamente diferente daquele idealizado pelo presidente do Azerbaijão. Na realidade, o que tem se observado é um grande temor de perseguição e um projeto sistemático de limpeza étnica em Karabakh, o que levou mais de 100 mil armênios a fugirem da região naquela que tem sido considerada uma das maiores ondas migratórias da história do Cáucaso. Segundo Filippo Grandi, atual Alto Comissário do ACNUR, os refugiados que estão chegando na Armênia estão precisando urgentemente de ajuda humanitária, o que torna a mobilização internacional imprescindível para gerir a crise. Segundo uma alarmante reportagem da Reuters, milhares de pessoas ficaram presas nas montanhas que cercam o Corredor de Lachin e não estão conseguindo chegar em território armênio.

Ademais, Aliyev lamentou, em uma recente coletiva de imprensa dada ao lado de seu maior aliado, o presidente turco Recep Erdogan, o encerramento do corredor terrestre entre o Azerbaijão e o exclave de Nakhchivan, ocorrido em 1991 durante a dissolução da União Soviética. Desde então, o território armênio de Syunik tem separado Nakhchivan do resto do Azerbaijão. A fala nada sutil do presidente azeri indica, como apontado pelo repórter Igor Gielow, que o Azerbaijão e a Turquia não estão satisfeito com a resolução da crise de Karabakh. Muito pelo contrário, na verdade existe uma séria possibilidade de que Aliyev e Erdogan invistam ainda mais em um violento projeto expansionista, o que realmente colocaria em cheque as supostas pretensões pacifistas do autocrata azeri em Karabakh.

Untitled-7 #OLHAR INTERNACIONAL: Crise no Cáucaso e mais um confronto em Nagorno-KarabakhMapa do Cáucaso com destaque para o exclave de Nakhchivan. Fonte: Google Maps

Um novo cenário geopolítico no Cáucaso

Há muitas perspectivas a serem debatidas nessa recente crise de Karabakh, mas, em um espectro geopolítico mais amplo, é interessante observar a mudança das dinâmicas de poder no Cáucaso, especialmente no que se refere à diminuição da influência russa sobre aquela região que é, historicamente, uma das suas mais importantes esferas de influência. Desde 2020, quando ocorreu a Segunda Guerra de Karabakh, o governo armênio tem se demonstrado frustrado com a falta de iniciativa de Moscou, seu principal aliado na região, diante das claras violações, por parte do Azerbaijão, dos acordos firmados após o conflito. As relações entre russos e armênios piorou ainda mais com a Guerra da Ucrânia. Conforme o Kremlin redirecionava suas prioridades estratégicas para esse novo conflito, autoridades em Yerevan foram muito vocais ao apontar como Putin não estava dando a devida atenção às crescentes tensões do Cáucaso. Diante desse cenário, armênios buscaram apoio no Irã e em potências ocidentais que tinham pouca influência sobre a região, o que foi enxergado pelos russos como uma séria traição por parte do primeiro-ministro armênio. Nikol Pashinyan.

Entretanto, conforme as tropas azeris avançaram sobre Karabakh, o Kremlin sofreu uma derrota particularmente significativa por não ter conseguido garantir seu principal objetivo no conflito, que era manter a sua influência intacta sobre o Cáucaso. Sua inação levou ao crescimento de outros agentes geopolíticos na região, que ocuparam o vácuo de poder deixado pela Rússia enquanto as relações com um de seus mais próximos aliados foram avariadas pelo conflito instaurado.

Assim, ao longo dos próximos dias acompanharemos o desenrolar da dissolução da República de Artsakh. A crise humanitária gerada pelo conflito deverá se estender pelos próximos meses e a mobilização da comunidade internacional será crucial para atender os refugiados que estão chegando todos os dias ao território armênio. Enquanto isso, o futuro geopolítico do Cáucaso virou uma séria incógnita ao longo prazo, o que transformará a atual crise em um alvo de sérios debates no mundo da política internacional.

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Fundado por alunos de Relações Internacionais da USP, somos um grupo de extensão que tem como missão promover a pesquisa e a extensão universitária na área de Relações Internacionais.

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