Carregando agora
×

A DESAFIADORA CONSTITUIÇÃO CHILENA

A DESAFIADORA CONSTITUIÇÃO CHILENA

A desafiadora constituição chilena: A derrota do governo Boric nas eleições para o Conselho Constitucional revelou os desafios enfrentados na elaboração de uma nova Carta Magna no Chile. Com a ascensão da extrema-direita e a rejeição da proposta original, o país se vê diante de uma tarefa complexa de conciliar diferentes perspectivas e evitar a formulação de uma constituição conservadora. A nova constituição se tornou um desafio significativo para o governo e para o sistema político chileno como um todo.

Escrito por: Victor Martinoja

Edição e arte: Julia Brito

Uma derrota estarrecedora para o Governo Boric

Para muitos observadores casuais, a vitória da extrema-direita nas eleições para o Conselho Constitucional do Chile, realizadas no dia 7 de maio, pode ter sido um grande choque. Afinal, há pouco mais de um ano, o país latino-americano parecia estar finalmente passando por uma transformação progressista. Com a ascensão ao poder do jovem presidente Gabriel Boric e os planos de formulação de uma nova constituinte.

No entanto, o cenário atual, entretanto, não poderia contrastar mais com o do avanço progressista dos últimos anos. O Partido Republicano de José Antonio Kast, político ultra-conservador derrotado por Boric nas eleições de 2021, conquistou, no último dia 7, 22 das 51 cadeiras do Conselho Constitucional, assembleia que será responsável por elaborar a nova Carta Magna do país. Essa derrota representa a perda quase total de controle do governo sobre a formulação da nova constituição. Tema que até então havia norteado a agenda política de Boric e que tinha levado milhões de pessoas às ruas nos protestos de 2019 e de 2020.

Mas então, o que ocorreu nos últimos anos para que a opinião pública no Chile passasse por uma reviravolta tão grande?

Precedentes: ‘Chile despertó’ e o insucesso da primeira constituinte

Protestos populares e motivações dos manifestantes

Gabriel Boric foi eleito em 2021 após uma série de grandes protestos populares que tomaram, entre outubro de 2019 e março de 2020, praticamente todas as grandes cidades chilenas. As manifestações, que tiveram como estopim o aumento das tarifas do metrô de Santiago, ganharam repercussão mundial devido aos milhões de manifestantes que tomaram as ruas do país e que fizeram com que essa série de eventos se tornasse uma das maiores demonstrações políticas espontâneas já realizadas na América Latina. Porém, a indignação com o aumento tarifário estava longe de ser a única causa dos protestos.

As principais motivações que engajavam os manifestantes eram a profunda desigualdade socioeconômica do país, o aumento do custo de vida, pensões baixas e o descaso da elite política com a população, o que gerou um descrédito institucional do modelo econômico chileno e da obsoleta Constituição de Pinochet. Os cantos entoados nas ruas eram os de “Chile despertó”, e o resultado desse processo foi um plebicito realizado em outubro de 2020, no qual 78,28% dos chilenos que compareceram às urnas votaram a favor da formulação de uma nova Carta Magna.

Problemas da constituição chilena

Imagens dos protestos de 2019-2020. Disponível em: https://www.latamkcl.co.uk/elcortao/chile-in-flames-how-soaring-metro-prices-have-led-to-social-revolt

Boric e a formação da Assembleia Constituinte

É dentro deste contexto que Boric, o presidente mais progressista do país desde Salvador Allende, foi eleito em março de 2022. A grande pauta política que norteou o início do seu mandato foi a formulação de uma nova Constituição, uma que pudesse sanar os graves dilemas sociais que acometem o Chile. A Assembleia Constituinte formada para isso foi um marco inédito, com a presença de 155 membros independentes que tinham pouca ou nenhuma experiência política, além de ter sido a primeira de seu tipo a contar com paridade de gênero e assentos exclusivos para os povos originários andinos.

Entretanto, como apresentado pelo pesquisador Oliver Stuenkel, a predominância de membros progressistas neste conselho, alinhada à falta de traquejo político da maior parte deles, transformou o ineditismo da Constituinte no seu calcanhar de Aquiles. O projeto de texto apresentado ao final do processo foi recebido pelo público geral como algo completamente utópico, e muitos acreditavam que as pautas ali debatidas não diziam respeito à realidade cotidiana do povo chileno. Enquanto o eleitor médio do país se identifica como centrista, a Constituinte se perdeu em extensos e vagos debates acerca de direitos minoritários, o que também a tornou excessivamente longa. Ademais, as transformações jurídicas profundas abordadas no texto fizeram com que esse eleitor também passasse a temer uma séria desestruturação das instituições estatais e uma consequente instabilidade política.

Rejeição da nova constituição no plebiscito

Assim, no dia 4 de setembro, os chilenos foram novamente às ruas, mas dessa vez para rejeitar, por meio de um plebiscito, a nova constituição proposta, com cerca de 62% da população votando contra o projeto de texto apresentado. Segundo Stuenkel, um fator determinante para essa derrota estrondosa teria sido a proposta de Boric, às vésperas do referendo, de apresentar uma constituição alternativa caso essa primeira não fosse aprovada. Hoje em dia, o próprio presidente reconhece publicamente que a sua gestão falhou na tentativa de aprovar a constituição “por não terem escutado direito aqueles que pensam de forma diferente”.

O cunho excessivamente progressista das propostas originais teria feito com que muitos indecisos, que rejeitam a Constituição de Pinochet, mas se identificam como centristas, votassem pelo “não” na esperança de que um novo projeto de texto mais moderado fosse elaborado. Porém, ao analisar tal cenário retrospectivamente, é possível afirmar que, apesar de todos os avanços das discussões acerca dos direitos humanos, a constituinte de 2022 foi uma grande chance desperdiçada pelo governo chileno de reverter as mazelas herdadas do regime de Pinochet. Isso se tornou ainda mais nítido nos últimos meses, conforme as eleições para o Conselho Constitucional do último dia 7 demonstraram que uma oportunidade como essa provavelmente não irá se repetir.

Chilenos que rejeitaram a nova proposta de Constituição celebram em Santiago. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2022/09/chile-rejeita-nova-constituicao-por-ampla-margem-e-entra-em-periodo-de-incerteza.shtml

Uma nova constituinte no horizonte

Queda de popularidade e onda de violência

O governo experimentou uma forte queda de popularidade nos meses que se seguiram à derrota de Boric no primeiro plebiscito. Sua taxa de aprovação atingiu a casa dos 25%. Analistas políticos indicam que diversos fatores contribuíram para isso, como a estagnação da economia chilena e a alta dos índices de inflação, mas parece haver um consenso de que o mais relevante dos motivos teria sido a onda de violência que tomou o país recentemente.

Apesar das principais cidades do Chile ainda serem relativamente seguras, especialmente quando comparadas aos seus vizinhos latino-americanos, o assassinato de três policiais nas últimas semanas, o aumento dos relatos de roubos e o crescimento do crime organizado internacional no país geraram uma mudança notável da percepção da população de quais são as prioridades políticas nacionais do momento. Segundo uma análise do Americas Quarterly, esse fenômeno tem afetado toda a América Latina, de forma que, se o assunto político dominante na região ao longo dos anos 2010 era a corrupção, a década de 2020 será marcada pelos debates acerca da violência.

Problemas da Constituição Chilena

 

Pesquisa de opinião sobre as principais questões políticas chilenas. Disponível em: https://www.americasquarterly.org/article/in-chile-and-elsewhere-crime-is-the-new-corruption/

 

Oportunidade para o líder da oposição

O contexto apresentado foi o terreno político perfeito para que José António Kast, líder da oposição a Boric, retomasse sua influência no cenário nacional. Os problemas que afligiam a população chilena em 2019 já não têm mais a mesma relevância no debate público, agora dominado por questões como segurança pública, imigração e tráfico de drogas. Essa mudança demonstra como o governo perdeu uma grande chance de passar as suas reformas quando as suas principais bandeiras políticas estavam em alta.

Ademais, a coalizão governista apresentou sérias dificuldades, em um primeiro momento, de apresentar soluções passíveis para a crise de segurança pública, de forma a abrir ainda mais espaço para que o discurso extremista do Partido Republicano de Kast ganhasse força com a radicalização da população, dado o quadro de séria instabilidade política. Essa tendência tornou-se evidente por meio de uma pesquisa de opinião realizada em Santiago em abril, na qual cerca de 53% dos entrevistados afirmaram apoiar uma intervenção militar e a suspensão de direitos constitucionais para conter o avanço do crime no país.

Dessa forma, a derrota do governo nas eleições do último dia 7 não foi necessariamente uma grande novidade. O voto do eleitor médio foi uma reação dura à agenda de mudanças, à instabilidade política no país e às incertezas geradas pelo processo constituinte anterior. A perda de capital político de Boric é notável, mas o crescimento da extrema-direita é certamente o que mais chama a atenção, especialmente quando constatado que é esse o conselho que vai elaborar a nova constituição.

O paradoxo da extrema-direita na formulação constitucional

O novo quadro político gerou o que Cláudia Heiss, chefe da Escola de Governo da Universidade do Chile, descreve como “um grande paradoxo para a política chilena”. Afinal, a extrema-direita do país sempre foi a grande opositora à formulação de uma nova constituição, dado o seu alinhamento ideológico com o regime de Pinochet. Agora, porém, são justamente eles, que sempre foram contra o processo constitucional e que sempre questionaram a sua legitimidade, que têm a oportunidade de escrever a Constituição que quiserem.

Tal cenário será um grande desafio não apenas para a coalizão governista de Boric, mas também para o sistema político chileno como um todo. O grande temor é de que a maioria extremista do Conselho formule uma nova constituição igual ou até mais conservadora do que a anterior. O novo plebiscito, para decidir se ela será aprovada ou não, ocorrerá no dia 17 de dezembro, e é por isso que será tão importante prestar atenção à política chilena ao longo do próximo semestre.

Resultado das eleições para o Conselho Constituinte. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2023/05/extrema-direita-chilena-tem-vitoria-acachapante-em-eleicao-para-novo-conselho-constituinte.ghtml

 

Fontes:

Share this content:

  • Comunica LAI

    Fundado por alunos de Relações Internacionais da USP, somos um grupo de extensão que tem como missão promover a pesquisa e a extensão universitária na área de Relações Internacionais.