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#OLHAR INTERNACIONAL: O FUTURO POLÍTICO DE ERDOGAN E DA DEMOCRACIA TURCA

#OLHAR INTERNACIONAL: O FUTURO POLÍTICO DE ERDOGAN E DA DEMOCRACIA TURCA

Escrito por: Lucas Philippini
Edição e Arte: Pedro Lucas Godoi 

No próximo domingo, 14 de Maio, os quase 60 milhões de votantes turcos irão às urnas em uma decisiva Eleição Geral que irá renovar as 600 cadeiras do parlamento e selar o futuro político do presidente Recep Tayyip Erdogan, no que pode ser a primeira vitória da oposição em mais de duas décadas. A influente posição geográfica da Turquia no tabuleiro eurasiano e seu grande peso econômico indicam que as capitais europeias para além do Bósforo e do Mar Negro e seus vizinhos do oriente estarão com os olhos voltados para Ancara no fim de semana.

“A DEMOCRACIA É COMO UM TREM”

Erdogan, presidente turco desde 2014 e primeiro-ministro ao longo da década anterior, começou a carreira política como o pragmático e reformista prefeito de Istambul em 1994. À época, ele afirmou “A democracia é como um trem. Você anda nele até chegar ao seu destino, então você desembarca.” Hoje, o que parece, é que Erdogan já abandonou o trem.

A República da Turquia, forjada por Mustafa Kemal Atatürk há exatos cem anos – após o colapso do Império Otomano – nos moldes de um Estado moderno ocidentalizado e secularizado, tem sido alvo de ataques incessantes por parte do presidente nos últimos anos. À testa do nacionalista AKP (Partido da Justiça e Desenvolvimento), Erdogan – que chega ao poder por vias democráticas em 2014 e é reconduzido ao cargo em 2018 – vem reconstruindo o aparato estatal nos seus moldes, a sua “Nova Turquia”. O que muitos analistas já ousam chamar de “Erdoganismo” tem sido a ideologia que beira o culto à personalidade em volta do presidente; suas raízes estão em um discurso nacionalista e conservador que rejeita o caráter liberal e secular do Estado turco, identificando “traidores” na minoria curda, nos secularistas pró-ocidente, no judiciário ou na imprensa opositora e, ainda, apagando as linhas entre Estado e religião e suprimindo movimentos concorrentes na sociedade civil.

Recep Tayyip Erdogan, o presidente turco, em discurso oficial. Fonte: Agência Brasil – EBC https://agenciabrasil.ebc.com.br/sites/default/files/atoms/image/05433935.jpg

Em 2016, setores do exército autodenominados “Conselho de Paz” promoveram uma tentativa fracassada de golpe de Estado contra Erdogan, justificando-se na erosão do secularismo e do regime democrático. O presidente reagiu acusando o ocidente e seu ex-aliado Fethullah Gullen (e seus apoiadores – a quem acusa de “terroristas”) de estarem por trás do movimento golpista, aproveitando a oportunidade para declarar um Estado de emergência que perdurou por dois anos e, no meio tempo, promover um expurgo que levou à punição e prisão de cerca de 80.000 opositores, de acordo com a agência France24.

Na esteira do estado de emergência, Erdogan propôs e aprovou um referendo constitucional que sepultou o modelo parlamentarista vigente, acabando com o cargo de Primeiro-Ministro que exerceu por 11 anos e concentrando amplos poderes no executivo, minando o sistema de checks and balances. De acordo com o V-Dem institute – que mede o índice de democracia em uma escala de 0 a 1 onde 1 indica “mais democrático” -, a Turquia, que pontuava em 0,5 quando Erdogan assume o cargo de Primeiro-Ministro, hoje está próxima de 0,1, de tal modo que muitos analistas se recusam a classifica-la como um Estado plenamente democrático e preferem comparar Erdogan a um sultão do século XXI.

A DERROCADA DE UM AUTOCRATA

Mas o que parece limitar as chances de uma campanha de reeleição bem-sucedida são os fatos recentes, pouco favoráveis ao incumbente, que abrangem desde o declínio galopante da economia turca às consequências dos terremotos do início do ano.

O estado deteriorado da economia remonta ao colapso da lira que, somente em 2022, perdeu metade do seu valor frente ao dólar. Como consequência imediata disso, a inflação atingiu 86% no último outubro, o valor mais alto em um quarto de século, de acordo com o Instituto de Estatísticas Turco. O poder de compra das classes médias e baixas – principais apoiadores do presidente – vem sendo corroído e, com ele, a imagem de Erdogan como um homem que proporciona uma melhora de vida tangível ao eleitorado. Muito da espiral decadente da economia turca, no entanto, pode ser explicada pelas escolhas pouco ortodoxas do próprio presidente à frente da condução da crise, como a sua campanha contra a decisão do Banco Central de elevar as taxas de juros, tal como aponta a revista britânica The Economist.

Por outro lado, as ondas do terremoto de janeiro de 2023 abalaram a já frágil base de sustentação de Erdogan. O sismo de magnitude 7,8 na escala Richter que castigou o norte sírio e sudeste turco é explicado pela posição geográfica da Turquia. Se por um lado a geografia turca – a ponte que liga a Europa à Ásia – lhe rende um papel de destaque geopolítico, a sua colocação junto à Placa da Anatólia lhe torna um dos países mais vulneráveis a abalos sísmicos. Os números assustadores que rondam os 60.000 mortos e um milhão de deslocados são parcialmente explicados pelo colapso em cadeia de blocos inteiros de apartamentos. O que ocorre é que desde que o AKP chegou ao poder, a atuação do Estado tem sido considerada leniente com a construção de prédios que violam as recomendações de segurança em um aparente esforço de apresentar um “boom” de construções, como aponta a Time Magazine. De modo similar, a resposta confusa e tardia dos serviços de resgate aumentou o coro de críticas ao presidente.

A OPOSIÇÃO

De acordo com as últimas pesquisas do The Spectator, a oposição turca apresenta as primeiras chances reais de vitória em praticamente 20 anos. O líder da ampla coalizão de oposição, Kemal Kılıçdaroğlu, aparece com 49% e Erdogan com 45%, o que indica um segundo turno quase certo entre esses dois nomes.

Kemal Kılıçdaroğlu, de 74 anos e líder do kemalista e secularista CHP (Partido Republicano do Povo) é uma figura que amarga uma sucessão de derrotas para o AKP de Erdogan. No entanto, sua imagem pouco controversa foi um dos fatores determinantes para que os seis principais partidos de oposição – de naturezas políticas distintas, que variam de sociais democratas a nacionalistas – se juntassem em uma coalizão ampla, a chamada “Mesa de Seis”, para derrotar Erdogan, de modo similar ao que as oposições israelense e húngara tentaram (mas sem sucesso) contra Netanyahu e Orban, respectivamente, em 2021 e 2022. Kılıçdaroğlu conta, ainda, com a possibilidade de agregar os votos curdos, visto que o seu principal braço político, o PKK, não lançará candidato próprio.

Entre as principais promessas da oposição, destrinchadas em um manifesto de 200 pontos, estão: a volta do sistema parlamentarista, restaurar a independência do judiciário, aliviar o delicado quadro econômico, melhorar as relações de Ancara com a minoria curda, promover uma reaproximação com Washington e Bruxelas e outras medidas que visam reverter as marcas autoritárias deixadas por Erdogan no executivo.

Kemal Kılıçdaroğlu, líder nas pesquisas de opinião, discursa em frente a pôster de Ataturk, o “pai” da Turquia moderna. Fonte: Birgün Gazetesi https://static.birgun.net/resim/haber-detay-resim/2021/11/09/kilicdaroglu-ndan-10-kasim-mesaji-942146-5.jpg

AS MUITAS POLÍTICAS EXTERNAS

Os grandes atores globais acompanham com apreensão o andamento das eleições na Turquia e seus importantes desdobramentos de ordem internacional.

Apesar de ser um membro da OTAN desde 1952 e aspirar uma vaga na UE, a política externa de Erdogan em relação ao ocidente tem sido inconstante. No auge da crise dos refugiados de 2015, Erdogan usou a ameaça de permitir livre passagem aos milhões de migrantes sírios, iraquianos e afegãos – que tentavam, a partir da Turquia, chegar ao Espaço Schengen – para ameaçar a União Europeia e obter suporte financeiro do bloco, no que muitos analistas classificam como uma instrumentalização da catástrofe humanitária para obter retornos políticos. Em um tom mais agressivo, o presidente faz uso de uma retórica antiocidental ao se dirigir aos europeus e norte-americanos como “imperialistas” que, em suas palavras, “amam ver crianças mulçumanas mortas”.

A relação com a Rússia também está longe de ser previsível. Ao se afastar do ocidente durante as administrações Obama e Trump, Erdogan buscou uma aproximação com a Rússia de Vladmir Putin, deixando para trás séculos de rivalidades entre os dois países. Por muitas vezes o alinhamento pessoal dos dois autocratas foi motivo de orgulho para o turco, que chegou a dizer sobre Putin: “Essa é uma pessoa que mantém a sua palavra – um homem”. Entretanto, mais recentemente, com a invasão russa da Ucrânia, a Turquia tem protagonizado um papel de mediador entre as duas partes, o que não impediu Erdogan de condenar a invasão e mesmo apoiar o esforço de defesa ucraniano com o envio dos letais drones Bayraktar. Outro grande motivo de divergência entre Moscou e Ancara é a Síria de Bashar Al-Assad, histórico aliado russo e inimigo jurado de Erdogan, que autoriza uma ocupação de nacos do norte sírio desde o início da guerra civil, à luz de uma política externa “Neo-Otomana”, na qual se enxerga o Oriente Médio como uma esfera de influência e interesse diretos da Turquia. A política externa “pragmática” de Erdogan promete se manter inalterada caso seja reeleito nesse mês.

A política externa de Kılıçdaroğlu, por outro lado, parece mais favorável à reaproximação com as democracias ocidentais. O possível novo governo sofreria muitas pressões para se alinhar automaticamente com a Europa e os Estados Unidos em assuntos do Oriente Médio e da própria Ucrânia, mas veria vantagens em não romper totalmente com a realpolitik de seu antecessor, é o que aponta o Wilson Center.

Questiona-se, por fim, se o prosseguimento das eleições – em seus prováveis dois turnos – se dará de forma pacífica e se o resultado final será justo, limpo e reconhecido pelos perdedores. É fato que em regimes personalistas como o turco, o governante fará de tudo para se manter no poder, o que se sustenta no controverso histórico do APK nas últimas eleições. “Ele pode tentar qualquer coisa, mas não importa o que ele faça, essa nação tomou a sua decisão” disse o líder da oposição se referindo a Erdogan. De fato, se a tentativa de reeleição do presidente for em vão, será um fim de uma longa e impactante era na Turquia, cujos reflexos e lições serão sentidos por democracias e autocracias em todo o globo.

 

 

FONTES:

https://www.bbc.com/news/world-europe-65467117

https://www.newyorker.com/magazine/2023/05/15/turkeys-earthquake-election

https://www.aljazeera.com/news/2023/3/10/turkey-to-hold-presidential-parliamentary-elections-on-may-14

https://www.politico.eu/article/onions-prayer-rugs-turkey-approache-decisive-battle-democracy-election/

https://www.turkeyinstitute.org.uk/commentary/democracy-like-tram/

https://foreignpolicy.com/2016/06/21/erdoganism-noun-erdogan-turkey-islam-akp/

https://academic.oup.com/book/36837/chapter-abstract/322011260?redirectedFrom=fulltext

https://www.economist.com/briefing/2023/05/04/could-turkeys-strongman-be-on-the-way-out

https://armenianweekly.com/2021/03/24/the-hagia-sophia-and-turkeys-neo-ottomanism/

https://www.aljazeera.com/news/2022/7/15/turkeys-failed-coup-attempt-explainer

https://www.euronews.com/2022/11/09/everything-is-overheating-why-is-turkeys-economy-in-such-a-mess

https://time.com/6256540/erdogan-turkey-earthquake-response/

https://www.theguardian.com/world/2023/may/08/kemal-kilicdaroglu-touted-future-turkish-democracy-elections-erdogan

https://www.bbc.com/news/world-europe-65467117

https://jasoninstitute.com/turkeys-weaponisation-of-the-refugee-crisis/

https://www.france24.com/en/live-news/20230411-tough-talking-erdogan-lashes-imperialist-west

https://www.reuters.com/video/watch/ice-cream-and-a-fighter-jet-putin-shows-id592719024?edition-redirect=in

https://newlinesmag.com/essays/the-uneasy-alliance-between-putin-and-erdogan/

https://www.wilsoncenter.org/blog-post/what-turkeys-elections-mean-ukraine

https://www.bloomberg.com/opinion/articles/2023-05-03/turkey-s-election-won-t-make-the-west-s-dreams-come-true

https://foreignpolicy.com/2023/05/09/turkey-election-erdogan-kilicdaroglu-akp-nation-alliance/

https://foreignpolicy.com/2023/05/03/turkey-elections-erdogan-kilicdaroglu-vote-manipulation-suppression-media/

 

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  • Lucas Andrade Philippini

    Graduando em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo (IRI-USP) e membro do Núcleo de Comunicação do LAI desde 2023. Escrevo artigos focados nas áreas de política e segurança internacional.