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#OLHARINTERNACIONAL – O QUE ESTÁ ACONTECENDO NO SUDÃO?

#OLHARINTERNACIONAL – O QUE ESTÁ ACONTECENDO NO SUDÃO?

Escrito por: Victor Martinoja e Bruno Alves de O. Fernandes. Edição e arte: Marianne Winker e Isadora Prada.

 

 

No último dia 15 de abril, Cartum, capital do Sudão, foi palco de uma série de embates entre batalhões das Forças Armadas e de um poderoso grupo paramilitar conhecido como FAR (Forças de Ajuda Rápida). Os confrontos entre ambos os protagonistas do conflito rapidamente se alastraram pelo resto do território nacional, de forma a instaurar um princípio de guerra civil calamitoso que já conta com mais de 500 vítimas e que tem o potencial de gerar uma das mais graves crises humanitárias já vistas no Sahel, como alertado pelas Nações Unidas. Diante do desastre regional que tal crise pode gerar, noticiários internacionais e analistas têm se debruçado sobre os recentes acontecimentos em Cartum, tendo em vista as vidas postas em risco pelo conflito e a ameaça de uma séria instabilidade política nessa região da África.

ORIGENS DO CONFLITO

A origem dos atuais embates no Sudão remonta à Revolução Sudanesa de 2019, quando uma série de protestos populares levou à queda do regime autoritário comandado por Omar al-Bashir, general que controlou o país por 29 anos. Após breves dois anos de um frágil governo acordado entre militares e civis que sucedeu o regime, uma junta militar liderada por dois generais que também haviam derrubado Bashir tomou o poder, de forma a terminar com qualquer projeto de transição democrática no Sudão. Os dois comandantes do golpe são o General Abdel Fattah al-Burhan, atual chefe de Estado sudanês, e o General Mohamed Hamdan Dagalo, também conhecido como Hemedti. Estes dois militares são justamente os grandes protagonistas dos confrontos que tomaram o Sudão nas últimas semanas.

De acordo com a revista ‘Foreign Affairs’, ambos os líderes podem ser compreendidos como chefes cleptocráticos de seus respectivos cartéis. Burhan construiu seu poder no país com base no apoio daquele que ficou conhecido como o ‘deep state sudanês’, composto por setores importantes das Forças Armadas e por uma série de corporações nacionais, como bancos e empresas de telecomunicação. Ele tomou o poder em 2021 sob o pretexto de uma grande operação anticorrupção contra os setores civis do governo, e a sua liderança foi consolidada devido aos seus laços com o regime de Bashir, apesar dele ter sido um dos protagonistas do golpe que derrubou o ex-presidente. Isso se deve ao fato de que muitos políticos e militares ligados ao regime anterior veem em Burhan uma oportunidade de recuperar poder e prestígio em Cartum, e isso se daria justamente por meio do restabelecimento de um regime autoritário centrado na figura de um grande líder militar.

Por outro lado, Hemedti surgiu, ainda no governo Bashir, como o líder de uma milícia árabe conhecida como Janjaweed, utilizada pelo ex-presidente para suprimir levantes realizados contra Cartum na região de Darfur. Essa poderosa organização paramilitar, que sob o seu comando foi formalizada como as Forças de Apoio Rápido (FAR), foi responsável por um atroz genocídio cometido contra minorias étnicas não-árabes em Darfur. Essa campanha brutal gerou prestígio e influência a Hemedti nos círculos político-militares de Cartum, especialmente devido à sua eficácia em conter os rebeldes. O general também adquiriu uma notável proeminência no cenário nacional ao montar seu próprio império corporativo e ao adquirir o controle de minas de ouro em Darfur. No espectro internacional, ele adquiriu sua relevância devido a uma aliança com a Arábia Saudita e com os Emirados Árabes Unidos em intervenções militares no Iêmen, além de ter estreitado laços com setores do exército líbio e com o Grupo Wagner, organização paramilitar ligada ao Kremlin.

Conhecido pelos seus grandes discursos e pelo seu apelo popular, Hemedti, que em um primeiro momento havia apoiado o governo de Burhan, passou a fazer uma ferrenha oposição ao presidente, alegando que o golpe de 2021 havia sido um erro e que a sua manutenção no poder resultaria em um regime autoritário tão brutal quanto aquele comandado por Bashir. A tensão entre ambos os generais apenas se acirrou com a tentativa do governo de submeter a FAR, que ainda é um batalhão paramilitar autônomo, ao sistema hierárquico das Forças Armadas. Assim, com a mobilização de suas tropas, Hemedti iniciou uma série de embates violentos contra o governo de Bashir, de forma a transformar Cartum, e posteriormente o país como um todo, em uma verdadeira zona de guerra.

Principais locais de embates ao longo das últimas semanas. Fonte: Al Jazeera https://www.aljazeera.com/wp-content/uploads/2023/04/INTERACTIVE_SUDAN_FIGHTING_APRIL18_2023-1681804725.png?w=770&resize=770%2C769&quality=80 Principais locais de embates ao longo das últimas semanas. Fonte: Al Jazeera https://www.aljazeera.com/wp-content/uploads/2023/04/INTERACTIVE_SUDAN_FIGHTING_APRIL18_2023-1681804725.png?w=770&resize=770%2C769&quality=80

 

EVACUAÇÃO DE CIVIS E CRISE HUMANITÁRIA

Em razão dos ataques que se alastraram pelo país e do risco eminente de uma guerra civil, o Sudão se vê diante de uma crise que a ONU classifica como “sem precedentes”. Segundo jornais locais, mais de 500 pessoas morreram ao longo das últimas duas semanas e milhares estão desabrigadas. Em um país que já sofria bastante com serviços de saúde extremamente precários, o sistema de atendimento à população se encontra em um estado próximo do colapso total. Repórteres da Al Jazeera têm reportado uma alta histórica no preço de alimentos e uma demanda crescente por ajuda humanitária na região.

Em Cartum, potências como os Estados Unidos e a França se mobilizaram para realizar uma grande operação de evacuação de estrangeiros, apesar de muitos ainda estarem presos na capital sudanesa. Para isso, foi negociado um cessar-fogo entre ambos os lados do conflito para a mobilização da ajuda humanitária. Já no último final de semana, as Nações Unidas anunciaram o envio do coordenador de ajuda de emergência, Martin Griffiths, para liderar os esforços da organização em Cartum, e a Cruz Vermelha enviou dois aviões com mais de oito toneladas de insumos médicos para reforçar os servidores da saúde.

Entretanto, apesar dos esforços, o número de sudaneses desabrigados e em situação de vulnerabilidade é alarmante. Milhares de refugiados têm cruzado as fronteiras do país todos os dias com destino a vizinhos que não necessariamente possuem a infraestrutura para receber esse volume de pessoas. A porção leste do Chade, por exemplo, já abriga mais de 400.000 refugiados sudaneses e os recém-chegados estão aumentando ainda mais a demanda por recursos públicos já sobrecarregados, o que preocupa a ACNUR. A ONU teme que mais de 800 mil refugiados possam deixar o país caso uma guerra civil realmente se inicie, e os esforços para atender os números de refugiados atuais já não são suficientes.

Retirantes acampam em Port Sudan numa tentativa de deixar o país em direção a Jeddah. Fonte: BBC News https://ichef.bbci.co.uk/news/976/cpsprodpb/7887/production/_129555803_mediaitem129555802.jpg.webp

Retirantes acampam em Port Sudan numa tentativa de deixar o país em direção a Jeddah. Fonte: BBC News  https://ichef.bbci.co.uk/news/976/cpsprodpb/7887/production/_129555803_mediaitem129555802.jpg.webp

 

O SAHEL EM RISCO

A crise sudanesa tem gerado um sério temor em relação à estabilidade política do Sahel e do Chifre da África como um todo. Diversos países vizinhos já têm enfrentado seus próprios conflitos ao longo da última década, e uma eminente guerra civil em um território das proporções do Sudão, que conta com cerca de 45 milhões de habitantes, faz com que organismos internacionais comecem a temer um possível efeito-dominó que impacte toda a região. O principal receio é de que o embate armado sudanês não se restrinja às suas fronteiras, de forma a impactar países como o já vulnerável Chade, como mencionado anteriormente, que tem sido vítima de sucessivos ataques terroristas orquestrados pelo Boko Haram e por células do Estado Islâmico.

De acordo com a ‘Foreign Policy’, a consolidação de uma guerra civil no Sudão levaria a um aumento significativo na circulação de armamentos leves no Sahel, especialmente por meio dos corredores de tráfico de armas originários da Líbia. Dado o caráter poroso de algumas fronteiras da região, a proliferação em alta escala de armas poderia levar ao fortalecimento de grupos terroristas e a escalonamentos violentos em diversos países já fragilizados.

Ademais, é preciso destacar que o Chifre da África já foi palco, nos últimos anos, de uma das maiores crises de refugiados já vistas no continente, decorrente da Guerra Civil Sul-Sudanesa. Segundo a ONU, mais de 2,5 milhões de sul-sudaneses foram forçados a deixar suas casas e a se deslocar para países como Uganda, Quênia, Etiópia e Sudão ao longo dos últimos dez anos. Isso explica o porquê dos campos de refugiados ao redor do território sudanês já estarem tão sobrecarregados, muitas vezes com acesso extremamente limitado a água, alimentos e serviços de saúde.

Dentro desse contexto, torna-se evidente como o escalonamento de uma nova guerra civil no Sudão traria apenas mais risco para o já grave quadro de refugiados no Sahel. O temor dos observadores internacionais é de que esse quadro possa gerar novos conflitos em países vizinhos, risco que seria significativamente aumentado pela crescente proliferação de armas na região, de forma a colocar até mesmo os serviços de ajuda humanitária em risco com os escalonamentos de violência decorrentes. Como apontado em outro artigo da Foreign Policy, a presença de grupos armados em áreas próximas aos campos é um dos principais agravantes que gera insegurança e risco de violência aos refugiados.

Dessa forma, na tentativa de mitigar maiores perdas, algumas das ações mais importantes no momento são as de evacuação de civis dos campos de batalha e o reforço das iniciativas de ajuda humanitária. No entanto, esse esforço é limitado e não soluciona a matriz do problema. O único meio de solucionar a crise no Sudão passa pela interrupção dos combates armados e pelo início das negociações entre ambos os generais que disputam o poder no país. Para isso, é necessário um maior envolvimento de potências com forte presença na região, como Estados Unidos, França, Egito e Arábia Saudita, em uma tentativa de negociação pela paz. Do contrário, o risco é de que o Sudão mergulhe em uma profunda guerra civil e acabe colocando, junto consigo, toda a região do Sahel em risco.

FONTES:

https://www.foreignaffairs.com/sudan/sudans-descent-chaos

https://foreignpolicy.com/2023/05/01/sudan-war-chad-sahel-small-arms-car-iswap/

https://www.aljazeera.com/news/2023/4/18/what-is-happening-in-sudan-a-simple-guide

https://www.aljazeera.com/news/liveblog/2023/5/1/sudan-conflict-live-un-warns-of-humanitarian-breaking-point

https://news.un.org/en/story/2023/04/1136037?_gl=1*r8579o*_ga*NDQwNTU1NTM0LjE2ODI5NzkwMDE.*_ga_TK9BQL5X7Z*MTY4Mjk3OTAwMS4xLjEuMTY4Mjk3OTMxMi4wLjAuMA..

https://www.reuters.com/world/africa/sudan-conflict-shows-no-sign-easing-sudanese-brace-more-violence-2023-05-01/

https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2023/04/exercito-do-sudao-confirma-extensao-de-cessar-fogo-onu-chama-crise-no-pais-de-sem-precedentes.ghtml

 

 

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