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Repatriação da Arte: A Devolução de Patrimônios e a Reescrita da História

Rapatriação da arte

Repatriação da Arte: A Devolução de Patrimônios e a Reescrita da História

Escrito por: Raquel Zaleschi e Maria Luísa Almeida

No dia 15 de setembro de 2024, o “Bronze de Benim”, um dos mais importantes artefatos da Nigéria, foi repatriado ao país de origem pelo Museu Britânico. O objeto, saqueado pelas forças britânicas durante a pilhagem do Reino de Benim em 1897, ficou exposto em Londres por mais de um século, ofuscando sua verdadeira história de expropriação colonial. Resultado de anos de intensas negociações entre governos e ativistas, a devolução representa não apenas um marco no movimento global de repatriação de obras de arte, mas também uma reparação histórica, revelando como o retorno de tais artefatos contribui para a justiça cultural e o resgate da identidade das nações de onde foram tirados.

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Ministra das Relações Exteriores da Alemanha, Annalena Baerbock, e ministro da Cultura nigeriano, Lai Mohammed, posam depois de assinar declaração para transferir a propriedade de Bronzes de Benin

Colonialismo, Neocolonialismo e o Dever de Repatriar

O saque de artefatos culturais durante o período colonial era uma prática estratégica. Não se tratava apenas de enriquecer coleções europeias, mas também de enfraquecer a identidade das nações colonizadas. Ao expropriar símbolos de religião e poder, os colonizadores desmantelaram as bases culturais que sustentavam a coesão social das sociedades conquistadas. Essas peças, exibidas como troféus nos museus europeus, eram uma afirmação da supremacia ocidental e reforçavam a narrativa de inferioridade dos povos colonizados.

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Esses objetos, no entanto, não eram meros ornamentos. Muitas dessas comunidades originarias saqueadas, tinham em seus artefatos religiosos e políticos pilares fundamentais para a manutenção de suas tradições e autoridades locais. Quando tais peças eram retiradas de seu contexto, o impacto na vida social e espiritual dessas comunidades era profundo, tirando a ordenação da vida política anteriormente estabelecida e apreciada por aqueles que a viviam. A privação desses símbolos gerava um vazio cultural e espiritual, comprometendo a continuidade de práticas ancestrais e desestruturando o tecido social.

Essa tática de desestruturação social também foi adotada por regimes totalitários e opressores. Em 1939, antes mesmo da eclosão da Segunda Guerra Mundial, Adolf Hitler havia ordenado o confisco de cerca de sete mil obras de arte moderna, a qual, posteriormente, seria proibida pelo regime. Com o estabelecimento oficial do nazismo, as perseguições à chamada “arte degenerada” continuaram. Paralelamente, o confisco dessas obras servia ao objetivo de leiloar-las e arrecadar uma renda adicional para financiar o expansionismo nazista. 

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Exposição belga que reuniu exemplares da  “arte degenerada ” leiloada pelos nazistas. Fonte: BBC

Com o fim do colonialismo formal no século XX, esperava-se que as nações recuperassem sua autonomia. No entanto, o neocolonialismo cultural perpetuou essa relação desigual, com milhares de obras de arte ainda em poder de museus do norte global. A repatriação dessas peças vai além de um direito: é um ato de reparação. Ele permite que as nações reconquistem suas histórias, reafirmem sua identidade cultural e rompam com os legados impostos pela colonização.

A Devolução em Tempos de Cultura Padronizada

O retorno de artefatos ancestrais ganha ainda mais relevância em uma época marcada pela atuação da Indústria Cultural, onde a produção artística é massificadamente moldada. Em meio a essa padronização, o repatriamento de obras de arte surge como uma resistência, um resgate da diversidade cultural. Ao recuperar suas peças, as nações não só enfrentam o passado colonial, mas também permitem que essas culturas floresçam novamente e oferecem uma contraposição à homogeneização cultural global que muitas vezes marginaliza ou distorce as tradições locais. Para sociedades que lutam para manter suas raízes em um mundo cada vez mais globalizado, a recuperação de suas obras de arte representa uma revalorização de suas próprias tradições, histórias e visões de mundo, uma alternativa à cultura de massa.

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O Muncab é um museu com ênfase na valorização de aspectos da cultura de matriz africana, destacando a sua influência sobre a cultura brasileira – AdenorGondim / Divulgação Muncab

A devolução de artefatos culturais não se trata apenas de devolver bens materiais, mas de reconfigurar a historiografia mundial. O “Bronze de Benim”, agora de volta à Nigéria, deixa de ser um objeto estrangeiro e se reintegra à narrativa cultural nigeriana. Sua presença em solo nativo permite que novas gerações conheçam, celebrem e se conectem com seu passado, resgatando uma herança cultural que foi interrompida pela colonização.

No Brasil, o retorno recente de obras de artistas negros que estiveram por mais de três décadas no exterior é um passo significativo. Essas peças, agora expostas no Museu Nacional de Cultura Afro-Brasileira em Salvador, não apenas resgatam a contribuição desses artistas, mas também reposicionam a importância da arte afro-brasileira no cenário artístico cultural. Elas se tornam símbolos de resistência e resiliência em uma sociedade que historicamente marginalizou essas vozes

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 ‘Revolta dos Malês’ de Sol Bahia – Con/Vida

Contudo, apesar dos avanços no repatriamento global, o Brasil ainda enfrenta um descaso crônico com sua própria produção artística. A falta de políticas públicas de preservação e a desvalorização da arte nacional resultam em uma alienação cultural profunda. Instituições culturais mal geridas, cortes em financiamentos e a ausência de educação artística nas escolas contribuem para uma desconexão generalizada com o patrimônio cultural brasileiro. Essa negligência afeta, sobretudo, as obras de artistas indígenas e afro-brasileiros. Ao desvalorizar sua arte, um país compromete a sua construção identitária. A desconexão com o patrimônio cultural gera um enfraquecimento da coesão social e das tradições, privando o Brasil de reconhecer e celebrar sua diversidade cultural.

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“Irawo Bori”, pelos artistas brasileiros Ayrson Heráclito e Lula Buarque de Hollanda 

Direito à Cultura: Patrimônio Inalienável e o Futuro da Arte

Historicamente, a primeira demanda pela repatriação de artefatos artísticos e históricos encontra respaldo no ano de 1863, com o Código de Lieber. Elaborado durante a guerra civil norte-americana, o código definia condutas adequadas aos soldados durante o período de guerra. Após o Código, surgem outros artifícios regulamentadores que também zelam pelos patrimônios culturais, como o Pacto de Roerich, documento organizado em 1935, o qual se tornou símbolo da defesa pela proteção desses artefatos e repatriação. Algumas das Convenções de Haia, também se destacam, dentre elas a Convenção de de 1970 da UNESCO, que insere de forma notória a questão da repatriação no cenário diplomático internacional. 

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Primeira Convenção da Haia, em 1899. 

Apesar da devolução das obras não ser inédita, a postura cada vez mais crítica perante aos efeitos desastrosos de políticas colonialistas e imperialistas, acrescida pela reflexão acerca da eficiência de mecanismos legais internacionais, impulsionaram a ascensão da luta pela repatriação no cenário geopolítico contemporâneo. A ascensão dessas reivindicações acabaram estimulando o surgimento de Atos que objetivam contornar alguns dos obstáculos legais para a devolução dessas obras aos despossuídos, como é o caso das questões de imunidade de jurisdição e a irretroatividade de certos tratados representam.

Um exemplo da adoção de mecanismos legais facilitadores a elaboração por parte dos Estados Unidos da América do Foreign Sovereign Immunities Act. O Ato Norte Americano prevê exceções ao exercício de soberania do Estado, ocasionando no simbólico retorno do quadro “O  Retrato de Adele Bloch-Bauer I” de Gustav Klimt para a família Bloch-Bauer, além de outras obras usurpadas pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. 

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O  Retrato de Adele Bloch-Bauer I” de Gustav Klimt

Cada nação tem o direito de preservar e exibir seus artefatos culturais. Eles não são apenas objetos de valor material, mas expressões fundamentais de uma cultura e identidade. O repatriamento de obras de arte é um ato de soberania cultural, e o direito internacional tem avançado para reconhecer a legitimidade dessas demandas. Ao reaver suas peças, os países reafirmam seu direito de narrar suas histórias e reconstruir suas identidades.

O retorno de obras de arte aos seus países de origem é um passo fundamental para garantir que as culturas possam se reconectar com seu passado e construir um futuro mais consciente. Em um país como o Brasil, onde a arte frequentemente é subvalorizada, o resgate e a valorização de sua produção artística são essenciais para fortalecer uma identidade nacional plural e vibrante. O repatriamento não é apenas uma questão de justiça histórica, mas também de garantir que futuras gerações tenham o direito de conhecer e celebrar suas raízes culturais.

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Agência Gov | Via Planalto

As disputas diplomáticas atuais pela repatriação desses artefatos não se tratam de conflitos isolados e particulares. Elas carregam em si uma característica inerente à Arte: a capacidade de representar um todo ainda quando se é um só. 

Mesmo as maiores disputas, que apresentam grandes apelos midiáticos, como o quadro de Gustav Klimt, não deixam carregar em si as reivindicações feitas por guerrilhas menores, travadas por gerações a fio pelo direito das mesmas à história. Nessa perspectiva, cada escultura religiosa convertida em mobília cara, cada manto transformado em casaco, configura em um abalo sísmico no direito de autodeterminação dos povos e na reconstrução étnica-cultural da humanidade. A luta pelo repatriamento é uma luta pelo direito à memória e pela preservação da diversidade cultural.

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