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Sobre Homens e Deuses: Uma Perspectiva Acadêmica

Sobre Homens e Deuses: Uma Perspectiva Acadêmica

Carolina Dantas Nogueira é pesquisadora e mestra em Relações Internacionais pela PUC-MG. No trabalho “Homens e Deuses: A Força do Mito da Criação na Política Externa Japonesa”, ela realiza um estudo sobre o comportamento político do Japão no pós-2a Guerra. Nesse cenário, o mito serve como base cultural e política, conectando a soberania do imperador ao seu caráter divino. A autora discute a importância da mitologia Shintoísta como legitimadora da autoridade da família imperial. Nogueira argumenta que é necessário levar em conta concepções internas da sociedade japonesa, e ressalta o desencontro das interpretações norte-americanas e japonesas acerca dos instrumentos de rendição e dos processos de transição durante a ocupação.

O artigo introduz a questão contestando a validade de abordagens comuns nos estudos de política internacional acerca da modificação do comportamento decisório de políticas militaristas do Japão no pós-guerra. Segundo a autora, especialistas como Ward e Berger trabalharam com a hipótese do trauma da derrota, relacionando ideias confucionistas com a mudança em relação ao militarismo. No entanto, essa hipótese encara erroneamente a força da realidade tradicional, e falha ao não considerar o comprometimento do governo japonês com o Imperador na leitura do Instrumento de Rendição. Coloca-se, então, a hipótese de que os aspectos culturais shintoístas de obediência ao Imperador eram predominantes nos processos decisórios japoneses. Para defender essa interpretação, a autora invoca a Declaração de Humanidade (Ningen Sengen) e a importância atribuída pelo Quartel General da Ocupação (GHQ) a este documento para a democratização.

Em um recuo histórico, o artigo retoma as origens do shintoísmo no arquipélago e destrincha os mitos que colaboraram para a consolidação da ideia da origem divina da família imperial. O lendário imperador Jimmu, a quem atribui-se a unificação do arquipélago, seria descendente direto de Amaterasu, deusa do Sol, através de seu neto, que tornou-se mortal ao casar com uma mulher humana. A divindade Amaterasu possui grande força como legitimadora da autoridade da família imperial.

Ainda, em registros chineses, encontra-se menção à lendária Imperatriz Himiko, responsável pelo desenvolvimento das ilhas, adoção de um sistema de tributação hierarquizado e utilização de elementos da mitologia shintoísta para fortalecimento de seu reinado. Essa tradição foi oficializada pela primeira vez na Era Asuka (飛鳥, 593-710), na primeira constituição japonesa, a chamada Constituição dos Dezessete Artigos (十七条憲法), apesar de possuir origens muito remotas. O documento tratava de orientações normativas acerca da natureza da hierarquia e do papel fundamental da obediência ao Imperador. Durante a época da promulgação da Constituição houve também uma grande centralização do sistema de governo, com a criação de uma burocracia palaciana. O conjunto de práticas mitológicas e ritualísticas do shintoísmo foram incorporadas e adotadas oficialmente.

O artigo explica que a classe militar teve papel central na organização política do arquipélago, e durante muitos séculos as decisões administrativas eram responsabilidade do chefe militar, o Shogun, designado pelo Imperador. Até a Batalha de Sekigahara (関ヶ原の戦 い) no ano de 1600 e a ascenção do Han Tokugawa (徳川), diversos clãs lutavam constantemente pela primazia. Os Tokugawa conseguiram garantir a unificação e a pacificação, inaugurando o período Edo, conhecido como uma época de paz e isolamento japonês.

O fim desse modelo de organização veio com o Tratado de Kanagawa, em 1854, que findou o isolamento das ilhas. Seguiu-se um período de modernização com a Revolução Meiji (1868-1895), paralelamente a um expansionismo imperialista, fortalecendo a posição internacional da nação. Em 1889 foi promulgada a Constituição Imperial do Japão (大日本帝 國憲法), a partir da Constituição dos Dezessete Artigos, e inicia-se a segunda organização política oficial. Foi adotado o modelo prussiano, com o Imperador como governante ativo com poder político, mas dividindo com um parlamento, a Dieta Nacional. O Japão se tornara uma potência regional, com rápido desenvolvimento de suas forças armadas, passou a denominar-se Dai Nippon Teikoku (大日本帝国) (O Grande Japão Imperial), e o Imperador era visto como um General. A autora destaca a remodelação de um novo templo como símbolo do sacrifício patriota que tornou-se o lugar oficial das visitas governamentais.

A estrutura erigida na Era Meiji durou até 1945. Como previsto no Tratado de Potsdam, as forças aliadas ocuparam o arquipélago até abril de 1952 (com exceção de Okinawa, onde as forças norte-americanas permaneceram até 1972). A ocupação tinha por objetivo pôr fim ao militarismo japonês, assim como garantir as forças democráticas. O Conselho dos Aliados em Tokyo atuava juntamente com a Comissão para o Extremo Oriente, em Washington. Entre o final de 1945 e o final de 1948 foi realizada uma grande reforma do serviço público e da organização burocrática japonesa. A chamada Reorientação Política culminou com a promulgação da Constituição do Japão (日本国憲法) e representou também um fortalecimento da Dieta Nacional. O ápice dessa mudança foi a passagem do Imperador de Divindade Encarnada e Soberano da Nação a “Símbolo do Povo e da Nação”, apesar de o termo em japonês permanecer o mesmo (Tennō). A terceira organização política oficial, a Constituição do Japão, alterou profundamente a estrutura governamental do Japão, inspirada pelo modelo norte-americano, através de leis e da subordinação de todos os funcionários a elas.

Após expor as três organizações políticas oficiais do Japão, a autora analisa o papel do mito e da família imperial na consolidação política do arquipélago. Ao contrário do que dizem os documentos do GHQ, o Japão já possuia códigos legais e práticas políticas antes da Restauração Meiji. Chama-se a atenção para o fato de os três documentos japoneses (a Constituição dos Dezessete Artigos, a Constituição do Império do Japão e a Constituição do Japão) serem designados pelo mesmo termo 憲法’ (kenpō), o que evidencia a equivalência de seu peso político. Para Nogueira, apesar de partirem do mesmo documento, a Declaração de Potsdam, os americanos e o governo japonês interpretaram o processo de maneira distinta: enquanto para os EUA tratava-se de rendição incondicional e remoção ultranacionalista, o Japão enfatizou a não destruição da nação e fortalecimento democrático. Para o Japão, a democratização ocorreu no período Meiji e não foi fruto do trabalho do GHQ. Assim, ao passo em que os Estados Unidos viam a rendição japonesa como incondicional, o Japão interpretava o evento mais como uma garantia da democracia do que uma declaração de derrota.

Concluindo seu argumento, Nogueira mostra que o posicionamento do Imperador de maneira favorável às diretrizes de ocupação foi imprescindível para que elas fossem cumpridas pelo governo japonês. Assim, do ponto de vista japonês, não houve rendição incondicional, mas obediência aos comandos do Imperador, com vistas a uma reorientação procedimental. A Ningen Sengen não significou o rechaço do caráter divino do Imperador, assim como a reforma religiosa do GHQ teve pouco impacto na realidade política japonesa, sendo que o Imperador continuou a ser o chefe religioso shintoista, imbuído de inúmeras obrigações cerimoniais.

Em síntese, o objetivo principal do artigo é compreender o papel de elementos da formação discursiva doméstica no relacionamento internacional de atores estatais, através do estudo de caso da relação Japão – Estados Unidos da América durante o período da ocupação, primeira fase (1945-1948). A partir da análise da influência de elementos shintoístas na formação política e social japonesa, especialmente o caráter central da figura do Imperador e da família imperial, evidencia-se a relevância de tais aspectos no processo de tomada de decisão. É possível concluir que a tradição e o mito ainda desempenham papéis fundamentais na política externa japonesa contemporânea, sendo essencial a compreensão dos aspectos culturais ao analisar o comportamento do Japão no sistema internacional.

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