#OLHAR INTERNACIONAL Terremoto no Marrocos: do sismo à cisma francesa
Terremoto no Marrocos deixa saldo de mais de 2800 mortos e levanta questões sobre o imperialismo francês no país, o que levou Mohammed VI a negar apoio de Macron na reconstrução marroquina.
Escrito por: Mariana Redondo.
Ruínas de Marrocos depois da tragédia gera impulso popular por resistência. Fonte: https://www.hitradio.ma/index.php/fr/seisme-au-maroc-trois-jours-de-deuil-national-et-un-elan-de-resilience
O terremoto: a ciência por trás e as consequências inevitáveis do fenômeno.
Na noite entre os dias 8 e 9 de setembro deste ano, Marrocos foi surpreendido com abalos sísmicos de magnitude 6,8 da escala Richter, deixando quase 2900 mortos e mais de 5000 feridos. O terremoto, o mais forte no Marrocos em quase um século, atingiu com força a cordilheira do Alto Atlas, próxima de Marrakech, e, no dia 13 de setembro, foi a vez da aldeia de Imi N’Tala sentir danos. Apesar de serem tremores secundários, uma pessoa ainda ficou ferida na região montanhosa. Países vizinhos, como a Argélia, relataram terem sentido o tremor, mas ninguém foi afetado.
Marrocos está localizado no limite entre as placas tectônicas da África e a Eurasiática e, por isso, pode ser, apesar de raramente, afetado por terremotos quando essas placas, de movimento convergente, colidem e, portanto, formam elevações na crosta. Entretanto, desde 1960, não havia um desastre tão fatal como este: apesar da região estar sujeita a terremotos, não é um evento tão simples de ser previsto e, pela localização interiorana das Montanhas em relação às placas, há ainda mais surpresas para os especialistas. É um desafio para os pesquisadores entenderem a formação da cadeia montanhosa, já que, provavelmente, formou-se quando a Terra orbitava apenas com a Pangeia em sua superfície.
As Montanhas do Atlas, como são chamadas, não param de crescer, e o terremoto comprovou o espessamento da crosta terrestre quando foi resultado de uma falha inversa, ou seja, da colisão das placas. O epicentro do desastre corresponde a Marrakech e tem sua profundidade estimada entre 8 e 26 quilômetros Terra adentro. Com a movimentação das placas, muita energia, provavelmente acumulada há muito tempo, foi liberada, gerando, inclusive, luzes no céu, advindas das cargas elétricas das rochas estressadas no tremor. Assim, a crosta literalmente sofreu um recorte de, aproximadamente, 30 quilômetros, que se fez ver por meio do terremoto.
Marroquinos na noite do terremoto esperando do lado de fora de suas casas. Fonte: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/luzes-estranhas-antes-de-terremoto-no-marrocos-intrigam-moradores-veja-o-que-cientistas-acham-que-significa/
Os moradores das cidades impactadas relatam aos jornalistas que visitam a região que duvidam que as buscas encontrem mais corpos e, acima de tudo, alguém vivo. Apesar dos cães de busca e das operações de resgate, a destruição foi tanta que os habitantes de Douzrou tiveram suas casas assoladas pelas pedras, tijolos, barro e madeira que restaram da vila. Este terreno, agora perigoso pelos frangalhos de uma cidade, torna difícil que algum espaço tenha acomodado alguma pessoa com vida depois do colapso das edificações. Para os que restaram, o desafio é encontrar um lugar seguro, que tenha abrigo e alimentação.
As expectativas da Cruz Vermelha também não são positivas: Marrocos precisará de meses, até anos, para se recuperar completamente. A projeção é de que metade da população de Marrakech tenha sido afetada pelo terremoto de alguma forma, isto é, mais de 300 mil pessoas. Al Haouz, Ouarzazate, Marrakech, Azilal, Chichaoua e Taroudant são as províncias mais atingidas e é importante observar a região com atenção. No Atlas, as falhas podem não ser tão frequentes, já que as rochas se movem e se ajustam com facilidade, mas outras falhas podem estar próximas e produzir terremotos menores, conhecidos como réplicas. Além disso, ater-nos à movimentação da crosta nos garante uma maior capacidade de prever com antecedência quando tremores devem aparecer e de amenizar e prevenir os danos que podem ser causados pelo abalo, bem como fortalecer as edificações e prepará-las para a reincidência do fenômeno.
Destruição em Tafeghaghte, que teve sua população reduzida pela metade, fotografada por satélite. Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cpdmpl9yee5o.amp
Ações diante do abalo: ações rápidas e decisivas de um governo em luto.
Diante do caos instaurado no país, o governo marroquino decidiu decretar três dias de luto nacional, o que, além de respeitar a tristeza diante das perdas das famílias natais, fomentou ações de coletivos nacionais e do próprio Palácio Real.
A marca que o terremoto deixou no Marrocos ultrapassa a barreira física, que coleciona mais de 2000 mortos e milhares de sem-teto, atingindo o âmago das emoções do país. O Rei Mohammed VI, governante marroquino, presidiu uma reunião que instituiu, além do luto, instruções detalhadas para acelerar as ações de resgate em território nacional. Uma comissão interministerial também foi implementada para pensar um programa de reabilitação e de reconstrução das habitações destruídas, de forma que as pessoas, agora, em situação de vulnerabilidade sejam cuidadas e tenham suas necessidades básicas atendidas, o que inclui alojamento e alimentação de qualidade. Ao final desta reunião, ficou decidido que o Tesouro Nacional e o Branco Al Maghrib abririam uma conta especial para receber contribuições voluntárias, tanto de cidadãos, como de organismos privados e públicos.
No final das contas, o Rei deixou claro que a ênfase das ações é na rapidez e na assertividade. A Comissão Interministerial de Reabilitação, órgão governamental recém criado, deve trabalhar para assegurar que as regiões afetadas se recuperem o mais rapidamente possível. Entretanto, apesar das ações tomadas, vias de transporte e hospitais seguem cheios graças à falta de ajuda externa e à dificuldade de acesso ao terreno pelos equipamentos e profissionais.
Escombros em Marrakech. Fonte: https://revistagalileu.globo.com/ciencia/meio-ambiente/noticia/2023/09/o-que-causou-terremoto-no-marrocos-estudioso-da-cordilheira-do-atlas-responde.ghtml
O povo marroquino e o analgésico nacional.
Apesar da catástrofe, a sociedade marroquina segue resistindo. Voluntários de todas as regiões do Marrocos (amigos, inclusive, da redatora deste texto) têm se unido em atos de solidariedade para ajudar na busca, resgate e coleta de bens essenciais, como comida, água e roupas. “Esse impulso de solidariedade mostra que, apesar da dor e da perda, o espírito da comunidade é indomável. Surgem histórias inspiradoras destes atos heroicos e pequenos gestos de bondade, que aquecem o coração. É nesses momentos difíceis que a identidade de uma nação é realmente revelada.”, diz a rádio líder marroquina, Hit Radio. Para os marroquinos, o luto tornou-se um passo crucial para que o país não desabe pelos seus mortos, mas para que pense em como pode tomar os primeiros passos na sua reconstrução.
A fé marroquina é na população jovem, dinâmica e cheia de energia, que utiliza da própria juventude para envolver os cidadãos no processo de reconstrução, seja por meio do voluntariado, seja por meio dos empregos criados a partir das decisões de seu Rei. O terremoto criou consciência coletiva, o que deixou a cultura marroquina, já muito calorosa e viva, ainda mais agitada, pronta para curar as lesões físicas e na alma de Marrocos. O sismo, no final das contas, é um lembrete não só da natureza, mas também de que o povo marroquino poderá lutar diante da adversidade. O que resta são a esperança e a solidariedade inesgotável perante à catástrofe que assola o próprio povo.
Jovens voluntários fazendo campanhas de arrecadação no Marrocos. Fonte: https://www.noticiasaominuto.com/mundo/2398533/marrocosvoluntarios-estao-a-fazer-chegar-ajuda-a-povos-mais-necessitados
Au revoir, Macron!
Charge marroquina que ironiza a oferta francesa de serviço humanitário. “A França vai conseguir sair dessa sem a resposta do Marrocos?” Fonte: https://www.instagram.com/p/CxGn-ojLy9w/?utm_source=ig_web_copy_link&igshid=MzRlODBiNWFlZA==
Uma questão que tem dividido opiniões tanto no Marrocos, quanto na comunidade internacional é a restrição quanto à ajuda humanitária no país. Ativistas dizem não compreender as ações tomadas pelo Rei, que nega apoio externo na reconstrução marroquina. A resposta para esta reflexão é muito mais complexa do que parece.
Marrocos aceitou a ajuda emergencial de quatro países: Reino Unido, Espanha, Catar e Emirados Árabes Unidos. O Brasil, por meio do MRE, apesar de geograficamente longe, emitiu um comunicado no mesmo dia do desastre em pesar às famílias das vítimas e em solidariedade ao povo e ao governo marroquino, operando com a embaixada brasileira em regime de plantão em Rabat, capital do Marrocos. A UNESCO também surgiu como uma opção para o governo marroquino, colocando a ONU de prontidão para auxiliar na mitigação da catástrofe. Muitos outros países, porém, foram relegados à exclusão dessa lista, já que “a falta de coordenação poderia ser contraproducente”, segundo o governo.
Estados Unidos, Tunísia, Turquia e Taiwan são alguns dos exemplos dos marginalizados, mas a França e a Argélia são os países rejeitados que geram mais especulações quanto às ações marroquinas: as duas nações, apesar de oferecerem ajuda financeira, resgate especializado, pessoal médico, cães farejadores, camas, tendas e cobertores, cultivam relações tensas com o Marrocos graças a, de um lado, um passado colonial e estendido ao protetorado francês, e, do outro, devido a tensões no que diz respeito à soberania e reconhecimento do território marroquino na África.
O governo marroquino nega que as relações diplomáticas tensas com os Estados argelino e francês sejam a verdadeira questão na recusa de ajuda, mas a realidade se mostra outra. As boas relações Argélia-França, Paris não reconhecer o Saara Ocidental como território marroquino, as acusações de espionagem marroquina na Argélia e a violência, por parte do Marrocos, contra o povo Saharaui, que reivindica para si o Saara Ocidental e tem sua autodeterminação apoiada pelos argelinos, são só alguns exemplos.
A Argélia ainda tenta aliviar as tensões com o vizinho, oferecendo ajuda e emitindo notas de “grande dor e tristeza” por meio de seu Ministério dos Negócios Estrangeiros. Já os problemas com os franceses são um pouco mais complexos: a França é responsável pela colonização do Marrocos no começo do século passado, o que deixou sequelas no país africano até hoje, incluindo o baixo desenvolvimento econômico e a dependência de ajuda europeia – até agora.
Afinal, o que está acontecendo?
A ministra das Relações Exteriores da França, Catherine Colonna, enfatiza que o governo marroquino deve “determinar o momento e o escopo dessa ajuda” sozinho e que, por isso, não é um problema ligado ao passado que a França compartilha com o Marrocos. O governo francês, mesmo assim, doou cinco milhões de euros a organizações não governamentais marroquinas, mas ainda possui restrições na concessão de vistos aos cidadãos do país norte-africano, não abriga um embaixador de Marrocos na França há meses e tem um histórico pavoroso de escândalos quanto ao uso de véus islâmicos em Paris.
O que pode ser entendido, portanto, é que a recusa da ajuda francesa é uma tentativa marroquina de se desprender de seu passado colonial. Marrocos sempre jogou em uma estratégia de equilíbrio, sendo aliado ocidental no combate ao fundamentalismo islâmico ao mesmo tempo em que mantém uma monarquia alauíta, isto é, relacionada ao quarto califa, e não deve mais querer depender de ajuda externa, especialmente francesa. Em nome de sua soberania e dignidade, o Marrocos pretende evitar movimentos imperialistas das potências ocidentais e ameaças regionais.
Mohammed VI, que é, também, a autoridade máxima religiosa e chefe de governo do país, é visto, pelo ocidente, como uma figura populista que gera devoção dos súditos, subvertendo a suposta monarquia parlamentar instituída no país. Considerado negligente e alheio aos assuntos do próprio Estado pelos países ocidentais, muitos marroquinos têm uma visão diferente. O Rei vende-se como uma figura moderna, que pretende deixar Marrocos seguir o próprio caminho ao invés de render-se aos europeus, que já lhes tomaram tanto. O problema é que nem todo o povo marroquino está de acordo com a posição de seu soberano: alguns querem que a França fique bem longe, afirmando que suas próprias instituições e o esforço solidário de seus cidadãos é emocionante e suficiente, mas outros reclamam por ajuda mais concreta e imediata no desespero e desejo de encontrar seus familiares vivos e condições dignas de vida.
Entende-se, é claro, que as duas posições são plausíveis diante de tanto luto no país. A ajuda externa, de fato, poderia auxiliar em uma recuperação menos dolorosa do Marrocos, mas não garantiria que o preço pelos curativos ofertados não seria revertido em juros em um futuro próximo. No final das contas, talvez, no âmago dos marroquinos, o anseio relutante em negar a ajuda francesa não esteja ligada à propaganda política do rei, mas sim à necessidade de se afirmar como povo, mesmo diante à inferiorização que sofrem não só de Macron, mas de toda a comunidade ocidental.
Como na charge acima e nos comentários que se seguem no post do Instagram, a luta do Marrocos não é por ego, mas por cansaço de ser visto como fadado à tutela de seus protetores, que não mais serão venerados forçadamente, mas, finalmente, ocuparão o lugar que lhes é devido: longe do povo marroquino.
As mais sinceras condolências ao Reino do Marrocos.
Fontes:
https://www.instagram.com/p/CxGn-ojLy9w/?utm_source=ig_web_copy_link&igshid=MzRlODBiNWFlZA==
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cpdmpl9yee5o.amp
https://www.brasildefato.com.br/2023/09/10/o-que-se-sabe-ate-agora-sobre-o-terremoto-no-marroco
https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=497zp9J4CS0
https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=B84dN6KdRP0
https://m.youtube.com/watch?v=t0vO38X95zQ
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c9w00jzkd0jo.amp
https://www.geo.fr/geopolitique/seisme-au-maroc-pourquoi-le-royaume-refuse-laide-de-la-france-216672
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