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Ruanda: O que Há por Trás da Maior Representação Feminina na Política Mundial

Ruanda: O que Há por Trás da Maior Representação Feminina na Política Mundial

Por Fabiana Souza e Fernando Alba

 

Ruanda, um pequeno país da África Central, é reconhecido por possuir um parlamento majoritariamente feminino, uma raridade (somente dois países no mundo atingiram tal feito) que desperta curiosidade. Conhecer sua história é importante não apenas para compreender como uma nação marcada por um genocídio conseguiu se reconstruir, mas também para avaliar políticas contemporâneas, como a controversa lei de imigração do Reino Unido envolvendo Ruanda. Essa lei, que visa enviar requerentes de asilo para o país africano, reflete dinâmicas históricas e políticas complexas que merecem uma análise profunda.

 

A herança colonial 

Antes da colonização europeia, o território era caracterizado por uma organização social baseada em comunidades predominantemente agrícolas, com práticas de subsistência e estruturas sociais organizadas em torno de clãs e chefias locais. Os reinos mais proeminentes incluíam o Reino de Ruanda e o Reino de Burundi, que compartilhavam uma língua comum e tradições culturais. A cultura ruandesa era rica em tradições orais, música, dança e artesanato, com uma organização social hierárquica que incluía a figura do mwami (rei) e um sistema de chefes subordinados.

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Comunidade tradicional de Ruanda. Fonte: Blog Raidho Viagens

A colonização de Ruanda foi profundamente influenciada pela partilha da África durante a Conferência de Berlim de 1884-1885, onde as potências coloniais europeias, incluindo a Alemanha, buscaram expandir seus territórios e influência no continente africano. Os alemães estabeleceram uma presença significativa em Ruanda, introduzindo administração colonial e políticas que favoreciam uma elite tutsi, que consideravam mais “europeizada”, em detrimento das populações hutu e twa. Essa divisão étnica artificial exacerbada pelos colonizadores alemães e posteriormente belgas desempenhou um papel crucial na preparação do terreno para o genocídio de 1994 em Ruanda. As políticas coloniais alimentaram tensões étnicas e sociais profundas ao longo do século XX, resultando em uma sociedade polarizada e desigual.

 

O Genocídio em si

Para abordar o que foi o genocídio em si, é preciso voltar ao início da colonização belga da região. Até o início do século XX, a população que compunha a Ruanda, apesar de distinta etnicamente, compartilhava entre si grande parte de sua cultura, não havendo distinções sendo feitas pela sociedade ruandesa. Contudo, com a ascensão do controle de Leopoldo II, o rei europeu se aproximou das classes sociais mais abastadas do país e as forneceu acesso a direitos exclusivos a eles, o que é costumeiramente denominado de privilégios, como educação. Tal ato foi realizado visando beneficiar um grupo social que, em uma eventual perda de controle belga do país, pudesse ascender ao governo e correspondesse a interesses europeus na região, mantendo influência sociopolítica até depois do fim do controle político direto imperialista.

Para tal, o governo belga se aproveitou do fato de que a maioria desses socialmente abastados compunham uma etnia minoritária numericamente no país, os tutsis, e estipulou uma narrativa de que eles eram superiores às demais etnias locais, como os hutus, atribuindo características culturais e fenotípicas mais europeias exclusivas a eles que não correspondiam à realidade. Não à toa, Lennart Wohlgemuth, pesquisador sueco da Universidade de Gotemburgo, em uma notícia do jornal Al Jazeera, alegou que a identificação própria com uma etnia em Ruanda era algo fluido e arbitrário, com muitos etnicamente hutus sendo considerados tutsi apenas por serem mais abastados socioeconomicamente.

Contudo, toda essa identificação veio a mudar em 1932, quando Leopoldo II introduziu nas carteiras de identidade ruandesas uma classificação étnica, consolidando de forma oficial e social uma segregação socioeconômica entre os hutus e os tutsis, criando uma tensão social entre os grupos que se aprofundou com a independência em 1962, quando a derrubada do controle belga por meio da deposição da monarquia tutsi vigente até 1959 foi confirmada oficialmente.

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Cédula de identidade utilizada em Ruanda antes de 1994, com a etnia logo abaixo da foto da pessoa. Fonte: Prevent Genocide International

Nesse processo, diversos tutsis, por terem perdido o poder e por verem a ascensão do conflito étnico se instalando localmente, cruzaram a fronteira com a República Democrática do Congo. Por lá, se firmaram e muitos se organizaram em uma associação paramilitar tutsi denominada Frente Patriótica Ruandesa (RPF), que visava retomar o poder e estabelecer um caminho seguro para tutsis que fugiram de Ruanda voltarem ao país. Tal associação planejava e executava ataques em Ruanda, principalmente contra o governo hutu, aprofundando as tensões entre os grupos sociais, chegando a causar uma guerra civil em 1990 entre a RPF, financiada pelo governo de Uganda, e o exército hutu de Ruanda. Em 1993, com a assinatura de acordos de paz, a guerra havia chegado ao fim e as previsões para o futuro eram positivas, porém um evento mudou todo esse cenário.

No dia 6 de abril de 1994, o avião que transportava os presidentes de Ruanda e de Burundi, ambos hutus, caiu e ambos morreram. Até hoje não se sabe quais foram as circunstâncias dessa tragédia, e não se sabe se foi um ataque coordenado, seja por tutsis para aniquilar um suposto inimigo, seja por hutus para utilizarem o evento como estopim para proporem exterminar os tutsis. De qualquer forma, o governo ruandês, hutu, se apoiou em milícias e mídias extremistas hutus para atribuírem aos tutsis a responsabilidade pela tragédia, estabelecendo tal narrativa perante o público e incentivando de forma explícita o extermínio de tal grupo étnico minoritário. Assim, nos 100 dias seguintes, mídias divulgavam métodos de assassinato e lugares onde “baratas”, termo pejorativo utilizado pelos extremistas para se referir aos tutsis, estavam, para serem encontradas e ou brutalmente assassinadas com machetes, ou sequestradas e mantidas como escravizadas sexuais no caso de mulheres e crianças. Estima-se que entre 500 mil e 1 milhão de pessoas foram mortas, dentre eles tutsis, twas (outra etnia minoritária) e hutus moderados, que também eram mortos pelas milícias caso não matassem tutsis que conheciam, fazendo com que muitos desses assassinatos causados pelo genocídio ocorressem entre pessoas que não só se conheciam, como também se amavam.

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Restos mortais de vítimas do genocídio em meio a outros objetos no chão de uma igreja de Ruanda. Fonte: VOA News

Tal evento só chegou ao fim quando a RPF, liderada por Paul Kagame, atual chefe de governo de Ruanda, derrotou as forças ruandesas e marchou livremente na capital de Ruanda, Kigali, depondo o governo hutu, em julho de 1994. Essa tomada do poder proporcionada pela invasão militar envolveu também a aniquilação não só de lideranças extremistas pelo caminho, como também de muitos civis, principalmente na República Democrática do Congo, em que, após o exército congolês absorver e fornecer apoio a muitos extremistas hutus que entraram no país após a vitória militar da RPF em Ruanda, Paul Kagame e suas forças invadiram o país e depuseram o então presidente congolês, em uma operação que violentou civis e que até hoje deixa marcas no Congo.

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Soldados da RPF marchando em direção a Kigali, capital ruandesa, em 4 de julho de 1994. Fonte: East African Diaspora Media Watch

 

Processo de reconstrução do país e a ascensão feminina nos postos de poder

Após o fim do genocídio, Ruanda, país já afetado pela miséria e pelas péssimas condições econômicas de sua população, estava em uma crise social sem precedentes. Diante da ausência de qualquer suporte da comunidade internacional por conta das influências da França, próxima e aliada do governo hutu, e dos Estados Unidos, que não queriam que a comunidade internacional interferisse em qualquer evento internacional por conta da morte de soldados norte-americanos na intervenção estadunidense na Somália em 1993, o genocídio, decorrente de décadas de tensão social propulsionada pela segregação arbitrária imperialista belga, provocou feridas profundas na sociedade ruandesa. Paul Kagame, de etnia tutsi, ao assumir o controle do país, procurou, visando promover estabilidade socioeconômica acima de tudo, responsabilizar os principais culpados pela tragédia humanitária e conciliar os grupos étnicos distintos, promovendo uma ideia de identidade nacional única para os ruandeses a fim de curar as feridas sem buscar revanches, cumprindo com o seu objetivo inicial.

Assim, o governo de Ruanda instituiu, em 1994, os tribunais Gacaca, destinados a julgar os crimes cometidos no período genocida. Apesar de muitas controvérsias, como o fato de muitos juízes terem participado ativamente do genocídio, o tribunal, fechado em 2012, tinha o seguinte molde: cada comunidade do país elegia um juiz, e tal juiz era responsável por receber denúncias e depoimentos e por julgar cada caso. Contudo, diferentemente da abordagem mais usual do direito, os julgamentos não ocorriam da forma convencional: tendo como palco, em muitos casos, algum jardim, praça ou semelhante, todos os membros da comunidade eram convidados e incentivados a fornecer o seu relato sobre tudo o que viu e o que fez durante o genocídio. E para assegurar a confiabilidade dos depoimentos, as punições para cada crime raramente eram severas, com serviços comunitários sendo a pena mais comum, tendo o intuito principal de possibilitar a documentação de cada crime cometido e de proporcionar às pessoas que mataram alguém, seja por convicção própria ou porque foram coagidos a tal, uma oportunidade de confissão e de redenção, podendo pedir desculpas a quem prejudicou e podendo se reconciliar, mesmo que a longo prazo, com os entes queridos das vítimas, visto que o aparato de propaganda ideológica anti-tutsi não existia mais, e tal ideologia não era mais disseminada pois muitos dos assassinatos ocorreram por conta da coerção das milícias extremistas, e não por um ufanismo ideológico.

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Tribunal gacaca em funcionamento. Fonte: LSE Blogs

Apesar de todas as falhas e controvérsias dos julgamentos de tais tribunais, como a ausência de julgamentos de crimes cometidos pela RPF, o tribunal, junto a outras medidas como a abolição da divisão étnica oficial e a instalação de comunidades em que parentes das vítimas convivem com quem as matou, obteve êxito em seu objetivo de fornecer uma, ao menos superficial, superação da crise social existente até então e a promoção de uma identidade nacional menos divisiva, evitando a deflagração de conflitos étnicos, que não se há registro que tenham ocorrido desde então. Isso não quer dizer que Ruanda se configure como estável e próspero: o país ainda possui um dos menores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do planeta, e Paul Kagame é considerado por muitos um líder autocrático e autoritário, perseguindo opositores políticos e tendo vencido nas eleições de 2017, em que obteve seu terceiro mandato, com 98,67% dos votos. Porém é inegável que se encontra, localmente, uma estabilidade maior quando comparado com os anos logo após o fim dos massacres.

Ademais, o genocídio em si possui ampla responsabilidade em um fenômeno político incomum presente em Ruanda hoje: a maioria feminina no parlamento. Fenômeno multifacetado, é muito causado pelo fato de que Ruanda, em 1995, tinha uma população 70% feminina, pois muitas mulheres eram torturadas e estupradas, mas não assassinadas. Dessa forma, na formulação da nova constituição, elas adquiriram certo protagonismo e foram capazes de estipular uma política afirmativa que prevê que ao menos 30% dos cargos públicos de cada área sejam ocupados por mulheres, e a área política não foi exceção. Assim, a representação feminina começou a ganhar força em um contexto de valorização da participação feminina e das mudanças por elas propostas.

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Parlamento de Ruanda em uma sessão oficial. Fonte: Chocolate Lifestyle

O genocídio de 1994 deixou uma marca indelével na sociedade ruandesa, influenciando profundamente a configuração política atual do país, o parlamento ruandês, composto majoritariamente por mulheres, é uma dessas consequências. Com mais de 60% das cadeiras ocupadas por mulheres, Ruanda lidera globalmente em representatividade feminina. Essas mudanças não ocorreram por acaso, após o genocídio, houve uma necessidade urgente de reconstrução social, e as mulheres desempenharam um papel crucial nesse processo. Elas assumiram responsabilidades na economia e na governança, muitas vezes substituindo homens que haviam sido mortos ou estavam presos. O governo reconhece a importância da igualdade de gênero para a estabilidade e o desenvolvimento.

Politicamente, Ruanda hoje é liderada por Paul Kagame, cuja presidência é marcada por um forte controle sobre a política e a sociedade. Embora tenha sido elogiado por promover estabilidade e crescimento econômico, Kagame também enfrenta críticas por práticas autoritárias e repressão à oposição. O governo ruandês tem buscado posicionar o país como um hub tecnológico e de inovação na África, investindo em infraestrutura e educação. No entanto, questões de direitos humanos e liberdades civis continuam a ser um desafio, refletindo o delicado equilíbrio entre desenvolvimento e governança autoritária.

 

 

 

Referências:

https://issafrica.org/iss-today/does-the-dominance-of-women-in-rwandas-parliament-signify-real-change

https://apolitical.co/solution-articles/pt/quais-paises-tem-mais-mulheres-no-parlamento

https://www.brasildefato.com.br/2019/04/17/por-que-ruanda-e-o-pais-com-mais-mulheres-na-politica-e-o-6o-em-igualdade-de-genero

https://www.dw.com/en/130-years-ago-carving-up-africa-in-berlin/a-18278894

https://www.britannica.com/place/Rwanda/Rwanda-under-German-and-Belgian-control

https://www.allaboutrwanda.com/about-rwanda/history.html

https://en.wikipedia.org/wiki/History_of_Rwanda

https://www.bbc.com/news/world-africa-26875506

https://www.aljazeera.com/news/2024/4/7/30-years-on-what-led-to-the-rwandan-genocide

https://www.aljazeera.com/news/2024/4/8/where-rwandas-genocide-perpetrators-and-survivors-live-side-by-side

https://www.cbc.ca/radio/ideas/why-rwanda-is-held-up-as-a-model-for-reconciliation-26-years-after-genocide-1.5842139

https://www.un.org/en/preventgenocide/rwanda/pdf/bgjustice.pdf

https://www.inclusivesecurity.org/how-women-helped-rebuild-rwanda/

https://www.theguardian.com/global-development/2014/apr/03/rwanda-20-years-on-how-a-country-is-rebuilding-itself

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Santista de cidade e de time, apaixonado por análises geopolíticas e estudante de Relações Internacionais na Universidade de São Paulo.