Diplomacia Brasileira e Multilateralismo: o discurso de Lula no Dia do Diplomata

Geraldo Alckmin transmite discurso de Lula na cerimônia do Dia do Diplomata, no Palácio Itamaraty – Foto: Cadu Gomes/VPR
Por Enrico Spinelli e Gabriela Abarca
No último dia 27 de Maio, o vice-presidente da República Geraldo Alckmin marcou presença no Palácio do Itamaraty, em Brasília, para as comemorações do Dia do Diplomata, que marcou também a formatura da Turma Eunice Paiva do Instituto Rio Branco. Na ocasião, Alckmin transmitiu a mensagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que não pode estar presente por questões de saúde. O vice presidente leu o discurso preparado por ele para os novos integrantes do corpo diplomático brasileiro, onde abordou temas como democracia, o conflito em Gaza e a ascensão do unilateralismo.
Para iniciar o discurso, Lula compartilhou que esteve presente em quase todas as formaturas do Instituto Rio Branco ocorridas ao longo de seus mandatos, exaltou a instituição e classificou seu papel como fundamental na construção da política externa brasileira e na inserção internacional do país. Entretanto, também mencionou os desafios a ordem internacional apresenta: “O peso da responsabilidade que recai sobre a diplomacia brasileira é hoje maior do que nunca. Voltei a ser presidente em uma época de negação da política. Caberá a vocês serem diplomatas em uma era de negação da diplomacia”.
Democracia e Conflitos ao Redor do Mundo

Bombardeios na Faixa de Gaza – AFP
O presidente chamou atenção para o fato de que o momento atual é de crescimento do extremismo político e do unilateralismo nas instituições internacionais, com a imposição de visões políticas que não valorizam a diversidade e negligenciam a dor de grupos marginalizados, usando Gaza como exemplo “Levado às últimas consequências, o apagamento do outro leva a seu extermínio. A guerra em Gaza é um sintoma trágico desse mal”.
Ainda sobre o conflito, pontuou novamente que o Brasil condena as ações do Hamas, mas que o conflito se estendeu hoje para uma “carnificina praticada contra civis palestinos, que resultou na morte de milhares de mulheres e crianças inocentes”. Por fim, afirmou que é dever da comunidade internacional reconhecer o Estado Palestino.
Valorização da Diversidade e Diálogo

Cúpula CELAC-UE – Ricardo Stuckert
“Só existe entendimento quando há respeito à pluralidade” – Em seguida, Lula se dedicou a expressar a necessidade da comunicação entre Estados, independente de suas diferenças políticas. Especialmente na questão sobre a integração regional latinoamericana, o presidente clamou pela reconstrução de órgãos como a União de Nações Sul-Americanas (UNASUL) e a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC). A fala veio como alerta para o fato de que a fragmentação contribui para que a América Latina permaneça marginalizada no sistema global: “Dar prioridade ao entorno não é uma escolha, é uma necessidade. Estradas, ferrovias e linhas de transmissão não têm ideologias. ”
Ademais, ressaltou a posição estratégica do Brasil, parceiro comercial tanto de Estados Unidos quanto da China, na construção de planos de transição energética e infraestrutura, além de outras oportunidades de colaboração no horizonte, como a Índia e outros países do sudeste asiático. Também relembrou a consolidação recente do acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia, que chamou de “um símbolo contra o protecionismo”.
A Reconstrução da Ordem Internacional

Cúpula do BRICS 2024 – Reuters
Lula também mencionou as relações do Brasil com os países do Sul Global, como os do continente africano: “Temos com a África uma dívida que só pode ser paga em solidariedade, cooperação e transferência de tecnologia”. Ainda no tema, exaltou os BRICS, apontando o bloco como alternativa de uma ordem internacional que “já não cabe nos limites estreitos da arquitetura construída em 1945”. Essa não foi a única crítica do discurso à estrutura da ONU, uma vez que o presidente ainda citou o Conselho de Segurança como uma forma de organização inadmissível nos dias atuais. “Há quem critique o conceito de Sul Global, argumentando que somos muito diferentes entre nós. Mas países de renda baixa e média continuam na periferia de um sistema que só beneficia o centro.”
Já ao final do discurso, houveram falas dedicadas à questão climática, onde o presidente relembrou a COP 30, que será sediada ainda este ano em Belém. Para finalizar, Lula deixou uma mensagem direta aos formandos do Itamaraty: “O multilateralismo é ferramenta fundamental para que o Brasil atinja seus objetivos nacionais. (…) O papel de vocês, diplomatas, implica levar para a frente externa as batalhas que travamos internamente.”
A Atuação da Diplomacia Brasileira na Crise do Multilateralismo

Tânia Rêgo/Agência Brasil – G20
As falas do presidente Lula no discurso aos formandos evidenciam um cenário já conhecido. Um mundo com crescente dificuldade em manter um sistema de cooperação global, com a ascensão de líderes extremistas e nacionalistas, escalada da tensão militar em diversos pontos do globo e o equilíbrio da balança de poder entre ocidente e oriente. É nele que o Brasil, símbolo de democracia e cordialidade no cenário internacional, se apresenta como uma potência diplomática – o grande mediador da diplomacia mundial atual capaz de se beneficiar da crise do multilateralismo.
Antes de tudo, é importante ressaltar que a neutralidade brasileira é uma característica marcante da atuação diplomática do Brasil desde antes da proclamação da república, o que faz dela uma das mais respeitadas e prestigiadas do mundo. Tal característica não é opcional, a “defesa da paz”, “solução pacífica de conflitos” e a “não intervenção” são três dos dez princípios que regem as relações internacionais do Brasil segundo a Constituição Federal de 1988, o que implica na manutenção de uma atuação neutra mesmo com a troca de governos.
Na prática, a neutralidade brasileira é técnica, e busca causar o menor dano possível aos laços diplomáticos com os países envolvidos em conflitos, agindo sempre em defesa dos princípios estabelecidos pelo Direito Internacional e recomendações dadas pela ONU.
A Dificuldade em se Manter Neutro no Cenário Global Atual
Em meio à Guerra na Ucrânia, o conflito tarifário entre China e Estados Unidos e o aumento do protecionismo europeu, o Brasil se vê no fogo cruzado entre os interesses conflitantes de seus aliados. Isso porque sua posição como potência regional da América Latina, membro fundador do BRICS e líder da exportação de commodities do mundo faz com que tais conflitos pareçam impossíveis de serem contornados. Para entender um pouco da dinâmica diplomática brasileira, usemos esses eventos atuais – símbolos da crise do multilateralismo – como exemplos.
A Guerra da Ucrânia

Ricardo Stuckert/PR – Encontro de Lula e Zelensky em Nova York
Desde o início do conflito, o governo brasileiro busca intermediar negociações entre Rússia e Ucrânia, tentando aproveitar o bom relacionamento do país com ambos os lados, esforços que surtiram efeitos apenas no longo prazo. Embora tenha se posicionado contra o conflito desde seu início, nota-se que os discursos brasileiros sempre foram, e são, menos incisivos que de outros países, como os Estados Unidos e França, nunca atacando unicamente algum lado da guerra, mas sempre usando como base argumentativa a defesa da soberania nacional, os direitos humanos, entre outros princípios que prezam pela manutenção da integridade da população e do próprio Estado. A estratégia brasileira permitiu a manutenção do fluxo comercial com ambos os lados, afetando o mínimo possível a economia do país, além de celebrar diversos acordos em setores estratégicos com a Rússia ao longo do período, ainda assim causando poucos danos aos laços diplomáticos com a Ucrânia.
O atual momento do conflito
Em 2025, rodadas de negociações para um acordo de paz se iniciaram em Istambul, Turquia, entre delegações russas e ucranianas, resultado das sucessivas pressões brasileiras por paz, intensificadas pelo governo atual. Ao final de 2024, por exemplo, uma proposta liderada por Brasil e China por um acordo de paz entre Ucrânia e Rússia ganhou força e incentivou o líder russo a buscar mais o diálogo com a Ucrânia, o que muito se deve ao apoio chinês ao documento, que veio a partir da constante pressão brasileira aos chineses. Atualmente, o diplomata Celso Amorim cumpre uma agenda de viagens na Europa, visitando tanto a Rússia quanto a Turquia, palco das negociações. A movimentação do diplomata mostra uma tentativa de inserir o Brasil nas negociações em curso, reafirmando o papel do Brasil como defensor assíduo da paz desde o início do conflito, em 2022.
A partir disso, a neutralidade brasileira se faz técnica e eficaz. A manutenção dos laços comerciais e diplomáticos com ambas as partes, abalando-os pouco, a mobilização de diferentes atores mundiais capazes de influenciar positivamente o fim do conflito e a realização de discursos coerentes e rígidos baseados na defesa dos princípios fundamentais do direito internacional, porém menos incisivos que de outros países, são algumas das características da diplomacia brasileira que fazem dela uma das mais prestigiadas do mundo.
Conflito Tarifário entre China e Estados Unidos

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva assina acordos com presidente da China, Xi Jinping, no Palácio da Alvorada – foto Ricardo Stuckert/PR
Após a posse do atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, o mundo tem vivido uma enorme instabilidade econômica advinda das ofensivas tarifárias do governo norte americano contra grande parte dos países do globo, sendo aliados ou não. A tensão, que já era muita, escalou após retaliações chinesas, as quais iniciaram uma guerra tarifária de grandes proporções. No meio do fogo cruzado se encontra o Brasil, que vê seus dois maiores parceiros comerciais guerreando economicamente enquanto, ao mesmo tempo, necessita agir com cautela para não mostrar preferência por algum lado e perder o apoio do outro.
Guerra Comercial China x EUA
O vertiginoso crescimento da influência econômica e política chinesa nos últimos anos têm ameaçado séculos de hegemonia norte-americana, e ambas as nações entendem a importância do Brasil como aliado para limitar o poder de seu adversário. Potência regional na América Latina, o Brasil possui voz ativa, sendo o maior responsável pela manutenção ou rearranjos na integração política, econômica e cultural na região, poder que Estados Unidos e União Soviética duelaram para angariar durante a Guerra Fria, por exemplo.
Hoje, embora a disputa não seja ideológica, o embate entre duas superpotências econômicas volta os olhares para o Brasil, não mais tanto pelo seu poder de coerção na região, mas pelos motivos que o permitem ser coercivo, como um mercado consumidor enorme, a exportação de grandes quantidades de commodities, a detenção de enormes reservas minerais, entre outros. Com isso, China e Estados Unidos disputam presença no mercado doméstico brasileiro, e cabe ao corpo diplomático brasileiro, seguindo o artigo quarto da Constituição Federal de 1988, se manter equidistante de ambos.
Reciprocidade das Parcerias Comercias
Um dos grandes exemplos de neutralidade do Brasil diante desse desafio foi a recusa de entrar formalmente ao projeto chinês conhecido como “A Nova Rota da Seda”, lançado com o objetivo de expandir a influência chinesa global por meio de investimentos na infraestrutura e conectividade em diversos países, aumentando a dependência deles às exportações vindas da China. Por meio de discursos ambíguos, o governo brasileiro sempre buscou a desvinculação do país com a ideia de adesão formal ao projeto, entretanto, não deixou de celebrar diversos acordos com os chineses para os investimentos no país em mineração, inteligência artificial e infraestrutura de transportes e portos.
Da mesma forma, embora tenha fechado poucos novos acordos com os Estados Unidos nos últimos anos, o país da América do Norte ainda é o segundo maior parceiro comercial do Brasil, e os laços diplomáticos entre ambos são muito complexos e duradouros para se pensar em qualquer possibilidade de rompimento ou sinalização de menor afinco.
A posição do Brasil
Portanto, é perceptível que o corpo diplomático brasileiro atua de forma a manter a equidistância da China e dos Estados Unidos na guerra comercial incentivada por ambos – um dos símbolos da crise do multilateralismo – utilizando da sua grande importância ao comércio global para barganhar com ambos os lados e obter vantagens comerciais, tais quais menores taxas de importação e exportação, investimentos em infraestrutura e tecnologia, entre outros.
Essa estratégia já foi observada antes na história do país, quando Vargas se manteve neutro até o penúltimo ano da Segunda Guerra Mundial, quando tomou definitivamente o lado dos Aliados, o que rendeu ao Brasil grandes investimentos americanos na sua indústria de base. Assim, à luz de táticas já utilizadas antes, a diplomacia brasileira, na atualidade, busca tirar o máximo de proveito possível da boa relação que tem com ambos os lados da guerra comercial e de seu poder de potência regional sem, necessariamente, precisar se posicionar formalmente.
Brasil e o Crescente Protecionismo Europeu

Os presidentes Emmanuel Macron (França) e Lula (Brasil). Foto: Sérgio Lima/AFP.
A ascensão de governos de extrema direita, corrida armamentista, greves populares contra o excesso de turismo, e cismas na União Europeia são problemas que não podem mais ser ignorados quando se fala de Europa na atualidade – o que é muito preocupante, pois não é possível negar a relevância do velho continente à estabilidade política e econômica global. O Brasil, país com longo histórico de relações com os países europeus, é incapaz de contorná-los, e é dever do corpo diplomático brasileiro manter o país o mais blindado possível do crescente protecionismo europeu.
Na Europa, o governo brasileiro possui estreitos laços culturais, políticos, econômicos e históricos com a União Europeia, sendo um dos primeiros países a estabelecer relações diplomáticas com o bloco já em 1960, o que confere a ambos um aliado importante de longa data. O status de ex-colônia portuguesa, e a recepção de intensas ondas migratórias europeias coloca o Brasil como um dos países que mais abrigam comunidades europeias reconhecidas pelo mundo, sendo o terceiro com a maior comunidade italiana, por exemplo. A forte influência europeia no país também facilitou imigração de brasileiros à Europa ao longo da história, deslocamento que está sendo cada vez mais barrado pelos países europeus. A exemplo de comparação, o Brasil é o segundo país com mais imigrantes notificados a sair de Portugal, cerca de cinco mil brasileiros.
Dialógo entre Blocos Econômicos
A formação de blocos econômicos é muito comum na geopolítica para fortalecer as demandas de determinados países ou regiões, sendo essa uma importante estratégia utilizada pelo Brasil na celebração de acordos com os europeus. Membro do Mercosul, a força conjunta do bloco, historicamente, contribuiu para a celebração de acordos de cooperação com a União Europeia, principalmente na área de tecnologia e desenvolvimento científico. Atualmente, os blocos estão próximos de fechar um acordo que promete resultar em mudanças significativas entre as regiões, necessária para um aumento do fluxo comercial entre ambas, fortalecendo ainda mais a relação entre os países dos dois blocos econômicos. O governo brasileiro vem realizando diversas viagens diplomáticas à Europa com o intuito de dialogar e resolver impasses que estão impedindo a celebração do acordo. A pressão brasileira é essencial para a conclusão do acordo, já que é o país com maior influência no bloco sul-americano.
Relações Brasil-Europa
Além disso, as missões diplomáticas brasileiras na Europa são muito reconhecidas por debaterem propostas para atração de investimentos na indústria nacional, na preservação ambiental e na energia verde, área em que o Brasil é considerado uma potência. Os intercâmbios culturais e científicos, além de cooperação bilateral na área militar e educação são muito presentes também – grande exemplo são os convênios de intercâmbio entre as universidades públicas brasileiras e as universidades europeias. Em 2025, o presidente Lula cumpre uma agenda de compromissos na Europa, em especial na França, onde se encontra com diversos líderes globais para debater todos os tópicos acima, por exemplo.
A respeito da ascensão de partidos extremistas e corrida armamentista no velho continente, o Brasil, seguindo a herança da diplomacia brasileira, se mantém crítico e demasiadamente contra. Em diversos discursos do atual governo, é perceptível a constante defesa da democracia e a necessidade em combater o avanço da extrema direita, como já o fez, novamente, em sua viagem à Europa. A corrida armamentista não é menos criticada, o foco do corpo diplomático brasileiro está voltado à reafirmação da necessidade de utilizar os trilhões de dólares investidos em desenvolvimento de armas para fomentar o bem-estar social, reduzir desigualdades e frear o aquecimento global – tópicos também ressaltados pelo presidente em seu discurso na décima sexta Cúpula dos BRICS, realizada em 2024.
Cooperação Mercosul-UE
Dessa forma, nota-se uma atuação diplomática brasileira contra o protecionismo europeu, se posicionando contra a corrida armamentista e em combate ao avanço da extrema direita. Ainda sim, o país sul-americano mantém seus esforços na cooperação bilateral para o desenvolvimento da educação, pesquisa e tecnologia para ambos os continentes, usufruindo da histórica relação cultural que mantém com os países europeus. A grande influência brasileira, somada ao bloco Mercosul, vem realizando importantes avanços para a conclusão de um acordo de cooperação entre Mercosul e UE, o qual promete contribuir para o aumento do fluxo comercial entre ambos.
Referências:
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