#OLHAR INTERNACIONAL: Rússia em 2024
Por Lucas Philippini e Victor Martinoja
Entre os dias 15 e 17 de março, foi realizada na Rússia a eleição presidencial de 2024, processo do qual Vladimir Putin saiu como grande vencedor, uma vez confirmada a sua reeleição por ampla maioria dos votos. No caso, 87,3% dos eleitores que compareceram às urnas optaram por estender o mandato do presidente russo por mais seis anos, e comissões eleitorais governamentais já confirmaram que cerca de 77,5% dos cidadãos aptos a votar fizeram parte desse processo eleitoral. Entretanto, a vitória numericamente esmagadora de Putin, que ele descreveu como uma forma de “reafirmar a unidade nacional russa”, também foi marcada por uma série de polêmicas, como a evidente perseguição política à sua oposição democrática e as repercussões sociais da Guerra da Ucrânia. Esse cenário levou a um sério debate entre analistas internacionais sobre a legitimidade do processo eleitoral e sobre o que o seu resultado significa para a política russa a médio e longo prazo. Por isso, para conseguir abordar um tema de tamanha complexidade com mais profundidade, a equipe de Comunicação do Laboratório de Análise Internacional Bertha Lutz decidiu entrevistar o cientista político russo Aleksandr Sherstobitov, a quem agradecemos encarecidamente pela disponibilidade e atenção.
Aleksandr Sherstobitov é doutor em Ciência Política pela Universidade Estatal de São Petersburgo, a mais antiga da Rússia, na qual exerceu carreira como professor de 2005 a 2020. É consultor, analista, palestrante e especialista em redes sociais, governança e política russa. Atua, desde janeiro de 2023, como professor e pesquisador visitante no Instituto de Relações Internacionais da USP. Em 18 de março, concedeu essa entrevista ao LAI para contribuir com o presente artigo. Nela, foram discutidos temas relativos à situação política da Federação Russa no ano de 2024.
A Rússia vai às urnas
Convidado a compartilhar suas primeiras impressões do processo eleitoral e perguntado se considera os resultados divulgados no último dia 17 de março como legítimos, o professor Aleksandr Sherstobitov diz que não se pode confiar em uma vitória de Putin com 87% dos votos.
O primeiro motivo, diz, é a prática institucionalizada de fraudes: o processo, que é estimulado de cima para baixo na cadeia de comando política, acaba saindo do controle quando chega às bases eleitorais. Nelas, os votos em favor de Putin e candidatos governistas são super inflados artificialmente de modo a refletir a lealdade dessas seções eleitorais ao Kremlin.
Parte da manipulação eleitoral é realizada, paralelamente, por meio do recém-introduzido voto eletrônico, que apresenta, no caso russo, deficiências agudas no que se refere à transparência e accountability: “o que acontece dentro dessas caixas pretas, que constituem o sistema eletrônico de votos, ninguém sabe”, relata o professor.
O segundo, aponta, é a mobilização de eleitores que trabalham para ou que são dependentes do Estado de alguma forma – constatação que pôde ser observada na sexta-feira (15), o primeiro dia de votação e um dia normal de trabalho, que contou com uma elevada taxa de comparecimento eleitoral. Isso ocorre porque os trabalhadores se encontram, na prática, forçados a irem às urnas e votarem nos candidatos indicados por seus superiores, uma vez que o Estado é monopsonista de diversas empresas privadas e porque ele próprio atua como um grande empregador, seja pelas empresas estatais ou pelo enorme serviço público que sustenta.
Desse modo, o sistema político vigente trabalha de modo a garantir “resultados desejados por meio de procedimentos desconhecidos”, o que vai de encontro à máxima de “procedimentos definidos e resultados inesperados”, definidora, na ciência política, do processo eleitoral em democracias. Mas uma vez que o nome do próximo presidente já é conhecido, surgem dúvidas quanto à própria necessidade de se realizar eleições.
Para o professor, o regime de Putin, que ainda apresenta aspectos de um “autoritarismo eleitoral”, beneficia-se das eleições de duas maneiras: garantem um verniz de legitimidade ao mandatário, enquanto estimulam a competição e a divisão de poder entre as elites que o cercam.
A morte de Alexei Navalny (e da oposição?)
Outra maneira de assegurar a vitória dos candidatos de situação é limitando a possibilidade de competição real com a participação da oposição. Além de restringir o acesso de partidos e candidatos opositores ao tempo de rádio e TV, o aparato do Estado tem sido empregado na perseguição sistemática a toda sorte de críticos do Kremlin.
Sergei Yushenkov, Anna Politkovskaya, Boris Nemtsov, Yevgeny Prigozhin e, mais recentemente, Alexei Navalny, compõem uma extensa lista de adversários políticos de Vladmir Putin que morreram em circunstâncias adversas nas últimas duas décadas.
Navalny foi, sem sombra de dúvidas, a figura política que fez a oposição mais contundente ao governo de Putin. Após sucessivos mandatos no poder legislativo e candidaturas frustradas para cargos majoritários, ele ganhou os holofotes no debate político nacional ao denunciar enfaticamente os complexos esquemas de corrupção que sustentam as relações de poder entre o Kremlin e os principais oligarcas russos. Por meio de longos e minuciosos documentários investigativos publicados no YouTube, Navalny expunha de forma inédita esses casos, a exemplo dos vídeos publicados sobre o palácio secreto que Putin mantém no Mar Negro. Por meio da repercussão estrondosa do seu conteúdo na internet, ele conseguiu se consolidar como um proeminente quadro da oposição ao governo de Vladimir Putin.
Como consequência, em mais de uma ocasião Navalny foi muito vocal em relação a supostos boicotes das suas candidaturas para cargos em eleições majoritárias. Um exemplo disso foi o eleição para a prefeitura de Moscou de 2013, na qual sua coalizão pediu uma recontagem dos votos devido a supostas fraudes no decorrer do processo eleitoral. Outro caso que ganhou repercussão internacional foi a eleição presidencial de 2018, na qual ele foi impedido pelo judiciário de se candidatar mesmo sendo a única figura política capaz de contestar o poder de Putin por meios democráticos. Em setembro de 2017, a Human Rights Watch denunciou a polícia russa por sistemáticas tentativas de sabotar a campanha de Navalny, que foi preso duas vezes no final de 2018, por “demonstrações públicas ilegais”.
Em agosto de 2020, ele foi levado às pressas para a Alemanha após uma tentativa de assassinato por envenenamento. Navalny estava viajando pela Sibéria em campanha política quando começou a passar mal em um voo saindo da cidade de Tomsk. O Kremlin negou efusivamente estar envolvido no caso, mas não é possível ignorar o seu longo histórico de perseguição a opositores, com uma mórbida tradição de envenenamentos. Ademais, seus médicos revelaram posteriormente que a substância utilizada na tentativa de assassiná-lo foi o agente neurotóxico Novitchok, utilizado normalmente pela FSB (serviço de inteligência russo que sucedeu a KGB).
Navalny ficou em coma na Alemanha por um mês e retornou a solo russo em janeiro de 2021. Ao chegar no aeroporto de Moscou, ele foi imediatamente detido pelos oficiais de imigração, que já estavam à sua espera. Um mês depois, a Justiça reativou uma sentença de três anos e meio por ele ter violado a sua liberdade condicional ao ter sido removido do país envenenado. Assim, Navalny foi transferido para uma colônia penal na Sibéria, aonde ele ficou preso até pouco tempo atrás. No dia 16 de fevereiro deste ano, ele faleceu devido a um “mal súbito” após uma caminhada matinal.
Ao ser perguntado sobre Navalny, o prof. Sherstobitov destaca como o legado deixado pelo ex-líder da oposição foi sentido nas últimas eleições. Em uma Rússia que controla a liberdade de reunião, Navalny convocou, em seu testamento político gravado pouco antes da sua morte, a população descontente com o presidente Putin a se concentrar ao meio-dia do lado de fora dos locais de votação – onde não poderia ser impedida de fazê-lo. O ato, chamado de “meio-dia sem Putin”, foi reproduzido dentro e fora da Federação Russa, reforçando que Navalny deixa para trás um grande capital político que, caso seja aproveitado por seus aliados, pode coroá-lo líder simbólico post mortem da oposição.
No entanto, a oposição no ano de 2024, após um quarto de século de governo Putin, encontra-se enfraquecida e fragmentada, com figuras proeminentes presas, exiladas ou mortas e que carece um líder com a habilidade política de Navalny, capaz de unificar suas diferentes alas. Mesmo com sua viúva, Yulia Navalnaya, tomando para si o trabalho de manter vivo o legado do falecido marido e recebendo apoio político da UE e dos EUA, Sherstobitov duvida que alguém exilado, como ela, seja capaz de mobilizar a sociedade russa de fora para dentro.
Por isso, inclina-se a dizer que Ilya Yashin, que está na Rússia, seja o nome mais adequado a substitui-lo no futuro próximo. Yashin, ex-aliado de Navalny, porém, cumpre uma pena de 8 anos por denunciar os crimes de guerra cometidos pelo exército russo contra a população civil ucraniana em Bucha, ainda nas fases iniciais da então chamada “Operação Militar Especial”.
Alexei Navalny participando de uma marcha em memória do político russo Boris Nemtsov. Fonte: Foreign Policy
Definindo a ideologia da Rússia de Putin
Com a reeleição referendando a manutenção da presidência de Putin até 2030, quando completará três décadas no poder, torna-se imperativo dedicar um olhar especial aos alicerces sob os quais esse sistema se sustenta. Buscando entendê-lo do ponto de vista ideológico, instigamos o professor Aleksandr a definir o que vem a ser a ideologia do regime de Vladmir Putin, alvo, por si só, de extensos debates entre estudiosos da área.
Para Sherstobitov, a Rússia passa, desde o início da guerra na Ucrânia e da subsequente concentração de poderes nas mãos do executivo, por uma mudança de um sistema que poderia ser descrito como um “autoritarismo eleitoral” para um regime personalista.
Primeiro, recusa-se a colocá-lo em paridade ao fascismo italiano ou ao nacional-socialismo alemão – apesar de reconhecer semelhanças -, ao destacar a ausência de um aspecto comum a esses dois regimes, mas que carece no modelo russo contemporâneo: a mobilização política das massas. Desde a ascensão de Putin ao poder, a parcela economicamente ativa da sociedade dependente, direta ou indiretamente, do Estado – que constitui, como apontado anteriormente nesta entrevista, a maior parte da economia russa -, foi incentivada pelas elites a entrarem em um processo de desmobilização e despolitização que persiste até hoje.
Além disso, ressalta a inconsistência do programa narrativo ecoado pelos propagandistas do Kremlin, que é, por muitas vezes, um mosaico de discursos contraditórios. Esse “oximoro”, maneira como o adjetiva, tem seus pilares na máxima “Ortodoxia, Autocracia e Nacionalidade”, reciclada dos tempos czaristas e adaptada, hoje, para promover, respectivamente: os chamados “valores tradicionais” da sociedade russa – o que se traduz, em linhas gerais, na defesa da família nuclear tradicional e, por extensão, na supressão dos movimentos LGBT e feminista e na aproximação com a Igreja Ortodoxa Russa -; a idealização de um modelo hierárquico rígido de deferência à autoridade; e um ardente nacionalismo antiocidental, cujas raízes se fincam tanto na Rússia Imperial quanto na União Soviética.
Apesar de poder ser definido como um regime político nacional-conservador ao redor da figura de Putin, a retórica empregada é circunstancial, pois tem de ser adaptada ou suprimida, interna e externamente, de acordo com as necessidades e a conveniência de quem as usa e a quais grupos é direcionada. Domesticamente, por exemplo, seu apelo cristão tem de ser por vezes silenciado em nome de apaziguar os cerca de 20 milhões de muçulmanos russos, demograficamente em expansão e que são maioria em várias das repúblicas constituintes da federação.
Externamente, quando se fala da guerra na Ucrânia e da relação mais ampla com o “Ocidente coletivo”, essa articulação ganha contornos ainda mais maleáveis, com os propagandistas de internet ou dos meios de comunicação estatais fazendo uso da justificativa de estarem lutando contra o “regime nazista de Kiev”, que é, ao mesmo tempo, pejorativamente classificado como um “Estado judeu”, “satanista”, liberal-progressista e, mais recentemente, “apoiador do fundamentalismo islâmico”, a depender de com qual setor político dialogam.
Por isso, entende que a ideologia acaba servindo, muitas vezes, como uma fachada aos interesses reais e mundanos das elites econômicas e políticas russas, mesmo que seja elaborada e apreciada por seus intelectuais, como Putin e Dugin, preocupados, nas suas palavras, mais com o que será escrito nos “livros de história”.
A Valsa Continua
Se por um lado é complicado entender os contornos sob os quais o regime de Vladmir Putin se situa ideologicamente, é mais fácil entender como ele se sustenta econômica e politicamente.
No início dos anos 1990, a erosão do modelo socialista e a rápida e pouco controlada transição da economia russa para uma orientada pelo capitalismo foi acompanhada por um amplo programa de privatização de autarquias – principalmente dos setores de comunicação, indústria e energia -, permitindo que uma nova e seleta classe de magnatas surgisse a partir da aquisição de nacos inteiros das antigas joias da coroa do Estado.
As figuras que vieram a constituir a poderosa oligarquia russa formaram a base de apoio à presidência de Boris Yeltsin e, desde a virada do século, cooptados a aderirem aos sucessivos governos de Vladmir Putin como presidente ou primeiro-ministro. Apesar da retórica inicial crítica que dirigiu aos oligarcas, quando assumiu a cadeira de primeiro-ministro em 1999, aliou-se tacitamente a eles e assegurou que seus aliados pessoais dos tempos de KGB ascendessem à posições lucrativas de poder, garantindo seu apoio com os lucros que se sucederam ao aumento das exportações de petróleo e gás natural, que constituiriam peça fundamental da economia e da projeção geopolítica da Federação Russa.
Questionado se as sanções impostas por EUA e UE a esses oligarcas em resposta à invasão da Ucrânia teriam algum impacto na estrutura política doméstica da Rússia, o professor disse que há muitos meios de esses grupos contornarem as restrições advindas das sanções, citando a transferência de ativos para outros lugares, como paraísos fiscais, e até mesmo a impressão de passaportes falsos.
Ele também defende que as sanções funcionariam e poderiam levar, inclusive, a uma mudança de regime em Moscou caso contassem com uma ação coordenada e consensual na comunidade internacional, o que não aconteceu em mais de dois anos de guerra, uma vez que nenhum país não-ocidental aderiu à retaliação financeira contra a Rússia de Putin. Esses Estados asiáticos, africanos e latino-americanos, na realidade, que aproveitaram para barganhar com os dois lados do conflito no intuito de extrair deles vantagens econômicas, acabam por dar uma sobrevida a Vladmir Putin e seu entourage de clérigos, militares e oligarcas.
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